sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mescalina e peiote - o "Santo Daime" dos EUA

Colocando a casa em dia, este é mais um post que prometi a um tempo atrás e demorei a desenvolver. A ideia para este post veio após uma discussão com um leitor sobre um artigo no qual o Santo Daime era discutido. De certa forma, o peiote é o "Santo Daime" dos Estados Unidos pois o país também teve que debater o dilema liberação versus tradição ritualística/religiosa na legislação que rege seu uso.

Longe de sugerir uma solução fácil para o problema brasileiro, o post visa somente informar do uso de substâncias alucinógenas em rituais religiosos em outros países e como este se dá.
Peiote

O peiote (Lophophora williamsii ou Lophophora diffusa) é um cacto que apresenta pequenas protusões ou “botões”. Este cacto é a planta da qual a mescalina é retirada, sendo o principal ingrediente psicodélico no peiote. Diversos cacti produzem a substância: o peiote, que cresce no sudoeste dos EUA e México, o cacto São Pedro ou Wachuma (Echinopsis pachanoi, ou Trichocereus pachanoi), e o Echinopsis peruviana (ou Trichocereus peruvianus) encontrados no Peru. A mescalina também pode ser produzida sinteticamente. Uma substância branca e cristalina, o sulfato de mescalina, é a forma pura da mescalina e pode ser encontrada em cápsulas.

Origem

Os índios norte-americanos acreditavam que Peiote era um deus, ou pelo menos um mensageiro dos deuses, enviado à terra para comunicar-se diretamente com o adorador. Diz a lenda que o cacto peiote foi descoberto quando um homem havia se perdido no deserto. Faminto, ele encontrou o cacto e uma voz que emanava da planta lhe disse que deveria comê-lo. O homem recuperou a sua força e retornou à seu vilarejo, levando o presente divino a seu povo. A história de Peiote pode ser traçada por até 3 milênios: espécimes psicoativos de peiote foram recuperados de cavernas e abrigos de pedra no norte do Texas com pelo menos 3000 anos de idade. Acredita-se que a cerimônia do Peiote descende da cerimônia Calia. A calia é a semente altamente tóxica da árvore Calia secundiflora. Existem evidências de que a semente da calia (em inglês mescal bean – daí o nome “mescalina”) tenha sido utilizada por mais de 10.000 anos. Em geral, um quarto a meia semente era torrada no fogo até atingir uma coloração dourada. A semente era então consumida causando um delírium que poderia durar até três dias.

Por volta de 1500, frei Bernardino de Sahagun, um cronicista espanhol, estimava que os índios Chichimeca e Toltec usasem o peiote por pelo menos 2000 anos antes da chegada dos europeus. A perseguição ao uso do cacto começou com a conquista pelos espanhóis. Para os cristãos, o peiote era associado aos sangrentos rituais astecas e a planta foi condenada como “raiz diabolica”. Em 29 de julho de 1620 o peiote foi finalmente denunciado como ato de supertição.

Os modernos estudos farmacológicos sobre o peiote só começaramo no final da década de 1880. Em 1888, o botanista Paul Hennings publicou um relatorio sobre a química da Lophophora, cujo principal ingrediente ativo (a mescalina) foi primeiramente isolada em 1897 pelo químico alemão A. Hefter.

O uso moderno da mescalina começou em 1919, quando Ernst Spath criou a substância sinteticamente pela primeira vez em seu laboratório. A partir da década de 30, estudos sobre o peiote ou a mescalina foram praticamente abandonados até que Aldous Huxley voltou a realizar controversos experimentos com a substância em 1953. Huxley escreveu suas experiências no polêmico livro The Doors of Perception (Às portas da percepção) que causou grande interesse na substância e esteve nas bases da revolução psicodélica dos anos 60 e 70. Por volta desta época, a mescalina passou a ser utilizada em experimentos de psicose quimicamente induzida, daí a origem do antigo nome das drogas alucinógenas, psicomiméticos. A droga continuou a ser investigada no tratamento do alcoolismo, neuroses e outros transtornos mentais até a descoberta do LSD, quando foi novamente abandonada.

Ser sacudido para fora das raízes da percepção ordinária, e ser mostrado, por horas infindáveis, o mundo interior e exterior, não como eles aparecem a um animal obcecado com a sobrevivência ou um homem obcecado com palavras e noções, mas como eles são apreendidos, direta e incondicionalmente, por uma Mente à Solta (Mind at Large) – esta é a experiência de inestimável valor para todos, e em especial para o intelectual.

Aldos Huxley, The Doors of Perception, 1954.

Nos EUA, o uso de peiote é apenas aceito em cerimônias religiosas da Native American Church (ou peiotismo, uma religião dos índios norte-americanos) sendo considerado legal (Brands, 1998).

Efeitos físicos

O consumo de mescalina causa aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, dilatação da pupila, aumento da glicemia sanguínea, da temperatura corporal, diaforese (sudorese) e náuseas. Em altas doses, entretanto, a mescalina leva à quda da glicemia e o usuário pode sofrer diarréia hemorrágica e inconsciência. Doses letais causam convulsão, parada respiratória e arritmias cardíacas. A morte geralmente se dá por falência respiratória.

Forma de administração

O cacto peiote contém botões que podem ser cortados da raíz e secados. Os botões podem ser mascados ou colocados em água, para produzir um líquido alucinogênico. Os botões de peiote também podem ser moídos em um pó e depois “fumados com algum material em folhas, como a cannabis (maconha) ou tabaco” (Brands, 1998).

A mescalina é ingerida sob a forma de pó, cápsulas, comprimidos ou líquido, embora este último seja impopular. Os usuários geralmente consomem entre 300 a 500mg (aproximadamente 3 a 6 botões de peiote) e os efeitos se iniciam entre uma a duas horas, desaparecendo gradualmente 10 a 12 horas após a ingestão.

Efeitos psicológicos
  • Alucinações visuais mesmo quando de olhos fechados
  • sensação de "novos" pensamentos
  • cenários com qualidade de sonhos
  • euforia
  • experiências místicas
  • ansiedade
  • medo de morrer ou de ser aniquilido
  • medo de perder o controle ou não voltar ao estado normal de consciência
  • irracionalidade
  • dissociação temporária/destruição do ego
A mescalina não é tão potente quanto o LSD, mas causa efeitos alucinógenos semelhantes. A "viagem" da mescalina pode durar até 12 horas e, similar ao que ocorre com o LSD, pode ser "boa" ou "má". Da mesma forma que o LSD, o usuário sofre uma sensação de prejuízo da sensação e percepção, alteração da percepção temporal, desorganização do pensamento e reações psicóticas.

Native American Church ou peiotismo

Native American Church é uma organização de aspectos semicristãos, sendo a religião dominante nas reservas indígenas Navajo, nos EUA. O principal aspecto desta igreja é o uso do peiote. Devido às propriedades intoxicantes do peiote, diversos missionários e oficias de governos norte-americanos buscaram reprimir o uso da substância nas reservas indígenas, mesmo após elementos do cristianismo terem sido incorporados no peiotismo. Com início no estado de Oklahoma, em 1899, diversos estados americanos aprovaram leis para proibir seu uso. Em 1918, para garantir alguma legitimidade e proteção sob a lei americana, os peiotistas organizaram-se na Native American Church. Em um estudo publicado em 1997, Pavlik relata que as estimativas mais recentes apontam que mais de 50% da população Navajo (mais de 100.000 membros da tribo) são afiliados ao peiotismo. Diferentemente do Santo Daime, no qual aspectos religiosos do cristianismo e de religiões africanas foram incorporados no ritual de beber o chá, os Navajos apresentam filiações cristãs (seja presbiteriana, católica ou mórmom) e também participam de rituais do peiote. Eles costumam citar 2 a 3 religiões distintas em suas práticas.
A ênfase nos rituais do peiotismo, entretanto, não parece ser tanto a de "abrir a mente" ou "conectar-se com o criador" mas em rituais de cura e o cacto é visto como um instrumento de cura, seja ela física ou espiritual.

Referências:
ResearchBlogging.org
Brands B, Sproule B, Marshman J. 1998. Mescaline. Drugs & Drug Abuse (3rd edition). Pps 351-357. Addiction Research Foundation: Toronto, Ontário: Canadá.
Narconon. Mescaline.
Pavlik, S. (1997). Navajo Christianity: Historical Origins and Modern Trends Wicazo Sa Review, 12 (2) DOI: 10.2307/1409206
Fotos: http://inipi.wicca.hu/kepek/Soul3peyote.jpg

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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Santa Catarina de Siena: Anorexia mirabilis

Vou passando, como a sombra que declina; sou atirado para longe, como um gafanhoto.
De tanto jejuar, os joelhos me vacilam, e de magreza vai mirrando a minha carne.
Tornei-me para eles objeto de opróbrio; quando me vêem, meneiam a cabeça
Salmo 109, 23-25

Este post é mais uma patografia, um estudo retrospectivo da vida e doença mental de uma figura histórica.

Catarina de Siena
Catarina de Siena, nasceu Catarina Benincasa em 25 de Março de 1347 em Siena, na Itália, filha de um tinturador de roupas e neta de um poeta local. Catarina nasceu em meio a epidemia de peste negra, que assolou sua região. Sua mãe estava na casa dos 40 anos quando deu à luz prematuramente às gemeas Catarina e Giovanna. Giovanna foi cuidada por uma ama-de-leite e morreu cedo, enquanto que Catarina foi amamentada por sua própria mãe e desenvolveu-se em uma criança saudável. Sua mãe já tinha tido 22 filhos quando Catarina nasceu, mas metade destes havia morrido. Após 2 anos, sua mãe deu à luz a seu 25o. filho, outra menina que se chamaria Giovanna, como a bebê falecida.

Catarina relatava ter tido sua primeira visão de Cristo aos 5 ou 6 anos de idade. Aos sete anos de idade ela jurou castidade, um voto comum entre meninas da época, que geralmente era abandonado quando atingiam a puberdade. Naquela época uma menina encontrava-se pronta para o matrimônio aos 12 anos de idade, passando a usar maquiagem e encaracolar e aloirar o cabelo. Catarina, entretanto, não se interessou por qualquer destes aspectos, acreditando que estes ofendiam a Deus. Como era muito próxima de sua irmã mais velha Bonaventura, a família solicitou que ela aconselhasse Catarina, que conseguiu convencê-la de que vestir-se no seu melhor e cuidar-se não ofendiam à Deus. Por anos Bonaventura manteve sua influência sob Catarina.

Entretanto, Bonaventura morreu durante o parto. Catarina sofreu muito com sua morte e passou a acreditar que sua irmã morrera como consequência dos prazeres terrestres que Catarina tanto queria evitar. Ela acreditava que fora fraca ao ceder às vontades da irmã para se vestir melhor e como consequência, Deus havia mostrado sua fúria ao levar para junto de si sua irmã mais amada. Em menos de um ano Giovanna também morreu. Ainda a se recuperar do luto e culpa das duas mortes, Catarina viu-se presa aos desejos dos pais que queriam que ela se casasse aos 16 anos com o viúvo de Bonaventura.

Completamente contrária aos desejos de seus pais, Catarina passou a jejuar de forma intensa, um ato que aprendeu com Bonaventura, cujo marido não era nada agradável: todas as vezes que ele a maltratava, Bonaventura recusava-se a comer até que sua atitude melhorasse. Aparentemente tal fato ensinou a Catarina o poder que o jejum pode ter nos relacionamentos. Ela cortou o longo cabelo, para desespero de seus pais e irmãos, que passaram a ameaçá-la de violência se não melhorasse seu comportamento. Para lidar com a hostilidade em casa, Catarina passou a ver seu pai como Cristo, sua mãe como a Virgem Maria e seus irmãos como Apóstolos, servindo-os humildemente no que considerava uma oportunidade para crescimento espiritual. Eventualmente seu pai desistiu de tentar mudá-la e permitiu que vivesse como quisesse. Ela passou a vestir até a morte uma camiseta/camisola de correntes que fería-lhe a carne, dormir em um banco de madeira com uma pedra por travesseiro/almofada e a martirizar-se 3 vezes ao dia por uma hora com uma corrente de aço: uma vez por seus pecados, uma pelos pecados dos vivos e uma pelos dos mortos.

Sua mãe desesperava à vista de sua filha emaciada e torturada e muitas vezes Catarina ficava deprimida, chorosa, dizendo-se atormentada por espíritos malignos. Após uma visão de São Domingos de Gusmão, ela decidiu aderir à ordem dos Dominicanos, contrariando os desejos da família. Sua mãe levou-a às águas termais de Bagno Vignoni para que sua saúde melhorasse e para que se esquecesse da ordem. Ao invés de relaxar nas águas mornas, Catarina procurava os locais mais quentes das termas para se queimar. Ela ficou gravemente doente, com uma erupção cutânea, febre e dores, o que convenientemente fez com que sua mãe aceitasse sua decisão. Dias após Catarina recuperou-se completamente para vestir o branco e negro do hábito das freiras. Ao invés de viver no convento, sua família mudou-se para os arredores do mesmo e continuou ao viver com ela. Catarina entretanto, custava-lhes muito caro: com seu hábito de doar comida e roupas sem pedir-lhes permissão, sua generosidade custou muito à família. Ela negava-se a comer com os famíliares e recusava a comida, referindo que havia uma outra mesa posta para ela, no Céu, com sua família verdadeira.

Catarina dedicou grande parte de sua vida a ajudar os doentes e os desprovidos, cuidando deles em hospitais ou em suas casas. Devido à sua caridade, ela ajuntou um grupo de seguidores que viajou com ela por todo a Itália central e norte, advocando por uma reforma do clero e por uma nova crusada, pedindo ao povo que se arrependesse dos pecados e se renovasse através do "amor total de Deus".
Em 1378, aos 31 anos, Catarina mudou-se para Roma onde trabalhou junto ao papa Urbano VI, onde viveu até sua morte em 1380 aos 33 anos. Dado que Jesus aparentemente morreu com a mesma idade e que Maria Madalena, ídolo de Catarina, aparentemente jejuou por 33 anos, há indícios de que sua morte tenha sido um suicídio passivo por desnutrição.

Com o passar dos anos, Catarina comia menos, dizendo não encontrar nutrição na comida terrena. Ao invés de comer, ela recebia a Comunhão todos os dias. Mesmo seu confessor e as freiras acreditavam que sua dieta não era saudável e temiam um escândalo, ordenando que Catarina se alimentasse apropriadamente. Catarina, entretanto, dizia-se incapaz de comer, descrevendo sua inabilidade como uma doença. Ela vomitava tudo o que engolia e sofria de dores de estômago. Quando forçada a alimentar-se, Catarina introduzia galhos na garganta para provocar vômitos. Ela preferia servir comida aos pobres, muitas vezes a horas peculiares, e buscava "nutrição" neste contato. Muitas vezes ela sugava o pus da ferida dos doentes. Após estes episódios, sua saúde deteriorou-se e sua dieta consistia apenas de Hóstias Sagradas e pus.
Conforme Catarina adoecia, seu confessor e biógrafo desistiu de suas tentativas de fazê-la comer, assim como sua família havia desistido dela anteriormente. Uma crise que se abatia sobre a Igreja fez com que Catarina parasse também de beber água em Janeiro de 1380, de forma a atrair atenção à sua mensagem de unidade. Como não houve resultado, ela parou o jejum extremo,mas já era tarde para assegurar sua sobrevivência.
Após diversos milagres, o Papa Pio II canonizou Catarina em 1461.

Anorexia mirabilis

Segundo pesquisadores e estudiosos, Catarina de Siena sofria de Anorexia mirabilis, que significa "falta de apetite milagrosa". Esta condição parece referir-se quase que exclusivamente a mulheres e adolescentes da Idade Média que jejuavam, muitas vezes até a morte, em nome de Deus. O fenômeno também é conhecido como inedia prodigiosa (jejum progidioso).

A anorexia mirabilis parece diferir da anorexia nervosa de diversas formas: na anorexia nervosa, o paciente geralmente faz dietas para obter um nível de magreza, já que a doença é associada a imagem corporal distorcida. Já na anorexia mirabilis, a dieta é frequentemente associada com outras práticas ascéticas (renúncia de prazer) como a virgindade, comportamento autoflagelante, dormir em camas de espinhos e outros tipos de automutilações.

Vale lembrar que até recentemente, um corpo mais cheinho era visto como um claro sinal de afluência e boa colocação social enquanto que um corpo emaciado era um claro sinal de pobreza ou doença. Apenas na época Vitoriana as mulheres passaram a fazer dietas drásticas na busca pela beleza exterior. Até então, a dieta rígida era associada a engrandecimento espiritual.

Muitas mulheres notoriamente recusavam qualquer alimento que não a Eucaristia, demonstrando não apenas sua devoção à Deus e Jesus, mas também a separação entre o corpo e o espírito. Que o corpo pudesse existir por extensos períodos sem alimento dava às pessoas da época uma clara imagem de quão mais forte, e portanto mais importante, o espírito era. Não importava, na opinião popular, que os períodos de jejuns femininos fossem impossivelmente longos (de meses a anos). Eles simplesmente adicionavam significado especial a esta conquista feminina.

A prática da anorexia mirabilis reduziu-se bruscamente durante a Renascença, quando passou a ser vista pela igreja como herética, socialmente perigosa e possivelmente inspirada pelo demônio. A prática sobreviveu até o final do século 19, quando parece ter sido substituída pelo transtorno alimentar mais popular nos dias de hoje, a anorexia nervosa.

O corpo feminino, sexualidade e misticismo na Idade Média

Reda e Sacco escreveram uma análise da anorexia sagrada tendo Catarina de Siena como figura principal do artigo. No texto, eles dissecam a anorexia mirabilis da Santa contextualizando-a no período medieval em diferentes dimensões que resumo a seguir:

O corpo feminino na Idade Média
Naquela época, o controle, renúncia e tortura do corpo físico eram entendidos não apenas como rejeição do físico mas aceitação do divino

O corpo feminino como expressão da sexualidade
O corpo curvelíneo de uma mulher era visto como produto da própria mulher, enquanto que o corpo masculino era uma criação divina. De certa forma esta visão ecooa na sub-expressão da sexualidade de anoréxicas modernas, que buscam uma sexualidade infantil na redução dos caracteres sexuais secundários.

Manifestações físicas como afirmação de regras Místico-Religiosas
A anorexia e outras manifestações corpóreas davam à mulher medieval uma oportunidade única de afirmar seu poder sobre as regras místico-religiosas. Se uma mulher estivesse destinada a um casamento não desejado, a religiosidade extrema poderia libertá-la desta condição. Uma renúncia completa do corpo tornava possível que uma mulher alimentasse, expressasse e experimentasse suas sensações e desejos como manifestações de fé e expressão religiosa.

A influência da religiosidade no mundo atual

Huline-Dickens (2000), em seu artigo descreve como a herança judaico-cristã implicitamente operativa nas sociedades ocidentais influencia a vida moderna com seus símbolos religiosos e conceitos de gênero que reforçam os papeis sexuais tradicionais. Visões negativas da feminilidade são inevitáveis quando as mulheres são consideradas a causa do pecado e do mal e existem estudos que demonstram que autoagressão passiva, autopunição, frustração e raiva podem estar associados a tais valores com consequências como depressão, agorafobia e transtornos alimentares sendo mais observados em mulheres.

Ainda de acordo com as escrituras, o pecado foi introduzido no mundo pelo ato de comer. A este seguiu-se a desobediência da primeira filha, Eva. Como a cobiça causou o pecado, abstinência do alimento pode ser visto tanto como penitência como um meio para redenção do pecador e para se conectar com um pai distante. Cobiça, na forma de gula, é um dos sete pecados capitais na teologia Católica. Sentimentos de culpa com relação ao pecado de comer são muitas vezes expiados com a mortificação da carne (seja por punições ativas ou pelo emagrecimento progressivo).

Conclusão

Ainda hoje existem debates se a anorexia mirabilis é um diagnóstico válido dentro do contexto dos modernos transtornos físicos e psicológicos. Muitos acreditam que a motivação religiosa e ascética exemplificada neste texto por Catarina de Siena negam a ela a classificação atual de anorexia e as restrições dietárias auto-impostas ocorridas na época eram um fenômeno completamente diferente do que testemunhamos hoje. Além disso, é de se argumentar que a anorexia nervosa apenas surgiu na idade moderna e é definida dentro de certos valores culturais (como sociedades ocidentais).

Por outro lado, pode-se debater que os motivos que levam a um quadro de anorexia nervosa variam mesmo nos dias de hoje e são os sintomas físicos (emagrecimento, amenoréia, etc) e psicológicos que provêm o denominador comum aos diversos casos. Embora geralmente associada à crença de se estar acima do peso, uma imagem corporal distorcida pode levar ao medo de ser uma glutona e à crença de que ceder à fome pode ser um sinal de fraqueza ou até mesmo pecado.

Para a anoréxica a perda de peso significa autodisciplina e conquista, enquanto que o ganho de peso simboliza falhança e falta de autocontrole. A doença é geralmente associada a certas tendências societais e é mais prevalente em sociedades nas quais o alimento é abundante e facilmente disponível. Na época de Catarina de Siena, porém, a Fome espalhava-se pela Europa e os monastérios eram os maiores provedores de alimento para as comunidades. Entretanto é válido observar que não apenas Catarina, mas a vasta maioria das mulheres rotuladas anoréxicas mirabilis na época vinham de famílias com boas condições financeiras, nas quais o alimento provavelmente era facilmente encontrado. Além disso, a anorexia parece ocorrer mais em culturas nas quais a magreza é concebida como atrativa. Embora tal argumento soe como um fenômeno moderno, no auge do período monástico o ascetismo era um ponto central da prática religiosa devota e assim a magreza representava o oposto da gula e poderia ser um status altamente desejável.

Referências

ResearchBlogging.org
Feuerbacher H. (2006). Saintly Sickness: Catherine of Siena as a Prototype of Holy Anorexia.

Huline-Dickens, S. (2000). Anorexia nervosa: Some connections with the religious attitude British Journal of Medical Psychology, 73 (1), 67-76 DOI: 10.1348/000711200160309

Rampling, D. (1985). Ascetic ideals and anorexia nervosa Journal of Psychiatric Research, 19 (2-3), 89-94 DOI: 10.1016/0022-3956(85)90003-2
Reda M., Sacco G. (2001). Anorexia and the holiness of Saint Catherine of Siena. Journal of Criminal Justice and Popular Culture, 8(1) (2001) 37-47 

Wikipedia. Catherine of Siena.

Wikipedia. Anorexia mirabilis

A seguinte referência não foi utilizada neste texto mas acredito que vale a visita para quem se interessar sobre o assunto:
Griffin, J., & Berry, E. (2003). A modern day holy anorexia? Religious language in advertising and anorexia nervosa in the West European Journal of Clinical Nutrition, 57 (1), 43-51 DOI: 10.1038/sj.ejcn.1601511

O artigo faz uma análise da propaganda de produtos alimentícios que assumem uma característica religiosa (como o sorvete/gelado Magnum "Pura tentação") e sua influência na anorexia nos dias de hoje.

Fotos:
http://todustyoushallreturn.files.wordpress.com/2009/04/st-catherine-of-siena-circa_1746_by_giovanni_battista_tiepolo.jpg

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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aspectos psiquiátricos do cuidado de pacientes terminais (cuidados paliativos) II

Diagnósticos psiquiátricos – Prevalência, etiologia e como reconhecê-los, parte II (parte I aqui)

Delírium

O delírium é uma das principais causas da consulta de psiquiatria em hospitais gerais. Para um familiar e mesmo membros da equipe clínica, é muito difícil ver pacientes agitados, delirantes, com alucinações causadas por rebaixamento do nível de consciência. O delírium (que é uma entidade diferente do delírio, crenças irredutíveis que ocorrem com clareza de consciência) é provocado por uma alteração do sistema nervoso central (SNC) em resposta a desequilíbrios metabólicos, doenças cardiovasculares, arritmias ou quaisquer processos que comprometam o bom funcionamento cerebral. Sua ocorrência é bastante comum nos hospitais mas o mesmo é subdiagnosticado. É importantíssimo caracterizar e diagnosticar este quadro pois os processos subjacentes que levam ao seu desenvolvimento envolvem risco de vida para o paciente.
Assim, não é de se estranhar que pacientes terminais, cujos órgãos e sistemas estão a falir lentamente, apresentem prevalência elevada deste quadro. Segundo Erkinjutti (1986) 9% dos pacientes maiores de 55 anos no momento da admissão no hospital geral apresentam demência e 41% apresentam delírium. Além disso, cerca de 85% dos pacientes terminais apresentam o quadro.

Os fatores de risco específicos para a ocorrência do delírium incluem:
  • Idosos
  • Pacientes no pós-operatório
  • Pacientes com câncer
  • Pacientes com AIDS
  • Fatores etiológicos
    • Problemas metabólicos
    • Efeito colateral dos medicamentos
    • Anóxia (privação de oxigênio)
    • Abstinência de drogas
    • Infecções
Em 30% dos delírios as causas não são encontradas
O delírium pode ser classificado em (Lipowski, 1990):
  • Hiperativo (agitação, excitabilidade, distúrbios do comportamento - amedrontado ou agressivo, paranóia, alucinações)
  • Hipoactivo (depressão aparente, sedação, sonolência, introspecção, paciente quieto)
  • Misto
Diagnóstico
Geralmente o delírium apresenta um início súbito e tem causas orgânicas (médicas ao invés de psiquiátricas) e é um quadro típico de distúrbio da consciência, humor e percepção. Existem alguns instrumentos que podem ajudar no diagnóstico do quadro como as escalas Delirium Rating Scale (Trzepacz et al, 2001) e Confusion Assessment Method.

Ajustamento


O transtorno de ajustamento é um quadro auto-limitado associado a eventos vitais (ou alterações importantes na vida do paciente) como divórcios, luto, mudança de país, etc. Como uma doença grave e terminal como o câncer causa diversas alterações na qualidade de vida dos pacientes, não é de se espantar a alta prevalência do transtorno nestes doentes. O transtorno de ajustamento, entretanto, tende a ser auto-limitado e associado aos estágios de luto. Alterações biológicas (distúrbios do humor, sono, apetite e concentração) são comuns. Até 24% dos pacientes em hospícios apresentam reações de ajustamento.
Como o transtorno de ajustamento tende a ser auto-limitado, antidepressivos só devem ser administrados em reações severas e prolongadas. NUNCA se deve utilizar benzodiazepinas (calmantes tarja preta) pois os mesmos inibem e “congelam” o processo psicológico de ajustamento. 
Não medicalize! Uma abordagem empática é a melhor solução nestes casos.

Pânico e ansiedade
Na população geral quadros de pânico e transtornos de ansiedade são associados ao sexo feminino, pacientes jovens e de baixo status sócio-econômico. Estes padrões não se aplicam aos pacientes com câncer. 16% dos encaminhamentos para psiquiatria em pacientes terminais dizem respeito a transtornos de ansiedade. Destes, 73% apresentam transtornos de ajustamento e 9% depressão major. Além disso, sabe-se que 21% dos pacientes com câncer apresentam sintomas ansiosos (Derrogatis, 1983). Os sintomas apresentam-se de foma semelhante à população geral e geralmente são comórbidos a quadros depressivos.
Os sintomas ansiosos podem ser devido a 
  • Ansiedade antecipatória à quimioterapia
  • Dor incontrolável
  • Tumores secretores de hormônios e tumores que produzem ACTH (carcinoma de pulmão, por exemplo)
  • Estados de abstinência
  • Secundários a esteróides, broncodilatadores e estimulantes beta-adrenérgicos
Demência

Pacientes demenciados são clientes comuns de hospitais gerais e de enfermarias de cuidados paliativos. Estes pacientes apresentam seus próprios desafios no cuidado em geral, criando:
  • Problemas na comunicação, impedindo consentimento verdadeiramente informado
  • Problemas para apreciação do sucesso das estratégias (ex. tratamento da dor) por parte dos médicos
  • Alta vulnerabilidade ao delirium
  • Distúrbios do comportamento
Estratégias de manejo destes pacientes:

Manejo físico
Otimizar cuidado
Otimizar hidratação e nutrição
Corrigir deficiências vitamínicas e de eletrólitos
Considerar desordens endócrinas como causa
Considerar outras rotas de administração
Usar tão poucos medicamentos quanto possível

Manejo psicológico
Pacientes e cuidadores geralmente ficam aliviados ao serem esclarecidos de que os sintomas psiquiátricos podem ser uma complicação da doença de base (demência). Isto é importante, especialmente no caso de cuidadores de pacientes com delirium, que ficam bastante angustiados por o paciente tornar-se aparentemente “louco”.

ECT
Embora o público em geral tenha muitos preconceitos contra a eletroconvulsoterapia (ECT), ela tem seu lugar nos cuidados paliativos, sendo indicada em pacientes agitados, psicóticos e com sintomas graves de depressão, podendo melhorar o humor de forma mais rápida e com menos efeitos colaterais. Entre as contraindicações do procedimento encontram-se fraturas ósseas patológicas, tumor cerebral primário ou secundário se o paciente já estiver a apresentar crises convulsivas.

Manejo social e ambiental
Ajudar o paciente a organizar seus papéis e resolver conflitos
Ministros, padres, sacerdotes, pastores da religião do paciente podem dar apoio, se esta for a vontade deste
Manejo ambiental:
Número adequado de enfermeiros para garantir a segurança necessária
Ambiente seguro, quieto e que ajude na orientação do doente
Relativos devem fazer visitas breves mas regulares

Psicofarmacologia

Embora muitos quadros de agitação possam ser resolvidos com medidas ambientais descritas acima, manejo adequado da doença de base ou com mudanças nos medicamentos e hidratação, muitas vezes há necessidade de se utilizar medicamentos psiquiátricos específicos:

Antipsicóticos
Alguns são utilizados por seus efeitos antieméticos - reduzem náuseas e vômitos (clorpromazina, levomepromazina, prochlorperazina e metoclopramida). A principal indicação nestes pacientes é a redução da intensidade e duração dos sintomas de delirium atuando em delirium hipo e hiperativo(Breitbant, 1996). O haloperidol continua a ser o gold standart já que causa a maior contenção química possível, dentro da menor sedação, em doses geralmente não maiores do que 2mg/dia. Os atípicos apresentam eficácia comparável, mas sem vantagens significativas. 10-20% dos pacientes com delirium são arresponsivos a intervenções com neurolépticos. O controle só pode ser obtido, nestes casos, com sedação e redução do nível de consciência.Em geral, duas estratégias são mais utilizadas:
• Midazolam
• Propofol IV. O propofol é mais vantajoso nestes casos pois permite o controle do nível de sedação de forma mais fácil e a recuperação é mais rápida.

Psicoestimulantes
Dextroanfetamina (ao café-da-manhã e almoço, 25mg em doses crescentes de forma contínua no curso de dias), metilfenidato, pemolina.
São alternativas para o tratamento da depressão nos doentes terminais (Burns e Eisendrath, 1994) já que apresentam ação mais rápida que antidepressivos (AD). Os psicoestimulantes estão especialmente indicados nos pacientes mais próximos da morte, para os quais a ECT é contra-indicada e os AD demorariam muito a fazer efeito. Como os pacientes são terminais e o tratamento é previsto para não mais que um ano, não há problemas de abuso. Os psicoestimulantes devem ser prescritos com cuidado aos pacientes cardíacos e hipertensos e podem causar insônia, confusão, ansiedade e paranoia.

Opiáceos
Opiáceos são narcóticos, extremamente eficazes no tratamento da dor e pedra base do tratamento paliativo. Entretanto, podem causar depressão respiratória, mas na realidade a tolerância a este efeito ocorre rapidamente, sedação, constipação, confusão, e anormalidades perceptuais.

Corticosteróides
Utilizados como adjuvantes aos analgésicos
Agentes antinflamatórios potentes
Estimulam apetite, reduzem náusea e mal estar
Diminuem os efeitos de pressão em lesões intraespinais e intracranianas
25% dos pacientes experienciam alterações do humor: Se euforia leve, não há necessidade de tratamento. Se ocorrerem sérias alterações do humor deve-se parar o medicamento, reduzir a dose ou trocas para doses equivalentes: dexametasona por prednisolona e vice-versa

Processos psicodinâmicos e psicológicos do cuidado de doentes terminais

Elizabeth Kubler-Ross: Os cinco Estágios de Luto
  1. Negação e choque
  2. Raiva
  3. Barganha
  4. Depressão
  5. Aceitação
Psicodinâmica
No momento da avaliação psiquiátrica, os mecanismos de defesa mais comuns no paciente, na equipe e nos cuidadores vistos no momento da avaliação psiquiátrica são:
  • Negação "Tudo vai ficar bem. Eu sei que posso vencer esta doença
  • Intelectualização “Nós devemos analisar todos os problemas para se chegar às causas desta anemia” - o médico ou o doente preocupam-se com aspectos materiais da doença e detalhes ao invés de focar no fato de que o mesmo está morrendo
  • Racionalização "É claro que ele está com depressão, ele está morrendo” - e a consulta psiquátrica não é solicitada...
  • Deslocamento - O indivíduo fica furioso com a equipe sem qualquer motivo, porque não pode ficar furioso com a injustiça de ter um câncer
  • Projeção “Você não serve para nada. Vocês psiquiatras/psicólogos não conseguem curar nada”
Só se deve realizar intervenções nos mecanismos de defesa quando eles estão a atrapalhar o tratamento. Lembrar que a equipe clínica fica particularmente estressada/angustiada quando a identificação com o paciente é alta (por exemplo, uma enfermeira em fase terminal de câncer).

Crenças religiosas e espirituais

Devem SEMPRE ser permitidas dentro de uma enfermaria de cuidados paliativos pois trazem conforto ao doente e à família

Cuidado da família
Familiares de doentes terminais apresentam maior risco de doenças psiquiátricas e suicídio (tanto antes quanto depois da morte do paciente). Muitas vezes o psiquiatra é chamado para conversar com os familiares e não com o doente:
Avaliação de risco
Educação e suporte por parte da equipe clínica em contato direto com familiares
Consultas adequadas para membros da família com problemas psiquiátricos

Fotos:
http://www.station.lu/images/divers/Arbeiten%20in%20Luxemburg/palliative_care_station_small.jpg
http://www.scumdoctor.com/images/Adjustment-Disorder-Due-To-Hearing-Loss.jpg
http://www.scientificamerican.com/media/inline/blog/Image/Religion_cancer.jpg

Referências:

ResearchBlogging.org

Erkinjuntti, T. (1986). Dementia among medical inpatients. Evaluation of 2000 consecutive admissions Archives of Internal Medicine, 146 (10), 1923-1926 DOI: 10.1001/archinte.146.10.1923

Lipowski ZJ (1990). Organic mental disorders and DSM-IV. The American journal of psychiatry, 147 (7) PMID: 2356880

Derogatis, L. (1983). The prevalence of psychiatric disorders among cancer patients JAMA: The Journal of the American Medical Association, 249 (6), 751-757 DOI: 10.1001/jama.249.6.751

Burns MM, & Eisendrath SJ (1994). Dextroamphetamine treatment for depression in terminally ill patients. Psychosomatics, 35 (1), 80-3 PMID: 8134533

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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Aspectos psiquiátricos do cuidado de pacientes terminais (cuidados paliativos)

Com a publicação do novo Código de Ética Médica, o cuidado aos pacientes terminais está em foco. O novo Código é explícito ao proibir intervenções desnecessárias para prolongar a vida de um paciente terminal em sofrimento.

Quando ainda era residente, notei como o psiquiatra era constantemente chamado para avaliar pacientes terminais nas enfermarias de clínica geral (cardiologia, endócrino, etc) e enfermarias destinadas a pacientes com câncer/cancro. Muitas vezes via que era chamada mais no sentido de lidar com a ansiedade da equipe clínica ou da família, que esperavam um medicamento "sossega leão" para o doente emaciado e agitado, contido na cama para sua própria segurança. É incrível como essa visão da "psiquiatria de sedação" persiste na medicina brasileira e como os clínicos e a família não estão preparados para lidar com a morte. De fato o psiquiatra tem lugar no cuidado de pacientes terminais, mas longe de ser um técnico ali presente para administrar um anestésico e calar o doente, a avaliação pode trazer benefícios e esclarecer dúvidas.

Em primeiro lugar temos que conceituar a morte. Provavelmente escreverei um post específico no futuro sobre a antropologia da morte mas, de forma geral, embora a população mundial esteja progressivamente envelhecendo mais, paradoxalmente a morte não é aceita como como parte normal da existência. Morrer hoje é um ato médico, no qual muito embora a maioria dos pacientes refira que prefere morrer em casa, a grande maioria das mortes ocorre em hospitais, cercada de aparatos médicos e de certa forma dissociada da nossa consciência. Talvez este afastamento da morte do seio da sociedade seja o responsável pelo fato de a morte não ser vista como fenômeno natural. O mundo atual perdeu os rituais de passagem que asseguravam um processo de luto mais saudável e a morte hoje é mecânica e impessoal.

Na Europa, esta tendência impessoal tem sido refutada com a criação de Hospícios: Em 1967 foi criado o St. Christopher Hospice em Sydenham (na Inglaterra), destinados a receber pacientes terminais e fornecer um cuidado diferenciado e mais humanizado. Embora o nome lembre os manicômios psiquiátricos de antigamente na língua portuguesa, os hospícios são locais de paz e calma, com uma equipe treinada neste tipo de cuidados. Eu conheci o funcionamento de uma destas instituições em Somerset quando perdi um familiar com câncer de estômago há dois anos. O hospício é um misto de hospital e casa: embora conte com equipe clínica e material médico, a decoração é a mais aconchegante possível e os quartos e o layout arquitetônico primam pela busca de belas paisagens e jardins de relaxamento. As salas de espera para os familiares no período de visitas são aconchegantes como uma sala de estar e o hospício dispunha até mesmo de uma cafeteria self-service, onde podíamos fazer nosso próprio chá e comer bolachas disponibilizadas pela equipe por sobre as mesas. O leitor brasileiro deve estar a pensar nos custos de tal local para um paciente terminal e sua família, mas devo lembrá-lo que o sistema de saúde inglês é público e a maioria destas instituições é financiada por Instituições de Caridade ou pelo setor privado, que faz doações em troca de reduções fiscais

exemplo de cuidado paliativo em hospício, com um ambiente mais familiar e aconchegante, para conforto do paciente
Voltando ao assunto do papel do psiquiatra no cuidado destes pacientes...

De fato é verdade que os doentes terminais apresentam altas taxas de comorbidades psiquiátricas (Derogatis, 1983), mas também é importante notar que há um superdiagnóstico de depressão e muito poucos diagnósticos de transtornos de ajustamento e delirium. Assim, como há muita confusão nos clínicos e nos familiares sobre se o paciente está deprimido e como aparentemente este é o diagnóstico mais comumente fornecido aos pacientes terminais, vou começar por ele:

Depressão nos doentes terminais – Prevalência, etiologia e como reconhecê-la


Segundo a literatura científica, 47% de todos os pacientes com câncer/cancro apresentam um transtorno psiquiátrico, dos quais 68% apresentam humor deprimido ou ansioso e 13% apresentam depressão major (Lloyds-Williams, 2001). Em comparação, a população hospitalar (hospital geral) apresenta taxas de depressão em torno de 15% (Mayou e Hawton, 1986). Já a população geral apresenta prevalência de 5 a 7%. Ou seja: as taxas de depressão em pacientes com câncer/cancro terminal não são muito diferentes do que se espera encontrar em um hospital geral (ortopedia, cirurgia, clínica geral). Em geral, 52% dos pacientes em hospícios são referidos ao psiquiatra devido a “depressão”, mas apenas metade destes apresenta o quadro.
Fatores etiológicos que justificam a prevalência duas vezes maior de depressão nesta população:
  • Múltiplas perdas de funcionamento social e físico - uma doença por si só é um "golpe narcísico" e abala a autoconfiança e a ideação de invencibilidade que todos temos. Enfrentar a própria finitude e fragilidade pode levar à depressão
  • Futuro incerto e temido
  • Dor, constipação, problemas metabólicos
  • Efeitos colaterais de fármacos - muitos medicamentos podem reduzir os níveis de neurotransmissores responsáveis pelo humor (como serotonina, adrenalina e dopamina), causando um estado depressivo
  • Efeito direto do câncer a nível de neurotransmissores
Diagnóstico

O ponto chave para um diagnóstico correto de depressão nestes pacientes é observar sintomas psicológicos (humor deprimido, pensamentos negativos, culpa, desesperança e anedonia) ao invés de sintomas físicos (sono, apetite e concentração), que tendem a estar alterados devido à doença e seu tratamento.
Muitas vezes utilizamos escalas de depressão para assegurar e pontuar sintomas depressivos, mas estas não são bons instrumentos nesta população: o enfoque em sintomas somáticos pode levar a falsos positivos.
Os critérios abaixo foram criados para auxiliar clínicos que trabalham com pacientes terminais e são o "gold standard" na avalição de depressão em pacientes terminais:

Critérios de Endicott

A presença de 5 ou mais critérios durante 2 ou mais semanas é altamente indicativo de depressão em pacientes terminais:
  • Aparência amedrontada ou introspectiva
  • Retração emocional ou pacientes menos comunicativos
  • Retardo ou agitação psicomotora
  • Humor deprimido, subjetivamente ou observado
  • Marcada diminuição no interesse ou prazer na maioria das atividades durante maior parte do dia
  • Meditação mórbida persistente, pena de si mesmo ou pessimismo
  • Sentimentos de que não tem valor ou culpa excessiva ou inadequada
  • Pensamentos recorrentes de morte ou suicídio
  • Humor não reativo a eventos ambientais
Continuo o assunto nos próximos posts
Para ler mais: Coluna da revista Época sobre o dia a dia de uma enfermaria de cuidados paliativos no Brasil:
A enfermaria entre a vida e a morte

Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante que curar. Lá, todo dia eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim?

Referências:
 ResearchBlogging.org
Chochinov HM, Wilson KG, Enns M, & Lander S (1994). Prevalence of depression in the terminally ill: effects of diagnostic criteria and symptom threshold judgments. The American journal of psychiatry, 151 (4), 537-40 PMID: 7511875

Derogatis LR, Morrow GR, Fetting J, Penman D, Piasetsky S, Schmale AM, Henrichs M, Carnicke CL Jr. (1983). The prevalence of psychiatric disorders among cancer patients JAMA, 249 (6), 751-757 : 6823028

Lloyd-Williams, M. (2001). Screening for depression in palliative care patients: a review European Journal of Cancer Care, 10 (1), 31-35 DOI: 10.1046/j.1365-2354.2001.00244.x

Mayou, R.; Hawton, K. (1986). Psychiatric disorder in the general hospital The British Journal of Psychiatry, 149 (2), 172-190 DOI: 10.1192/bjp.149.2.172

Foto:
http://www.doh.wa.gov/hsqa/fsl/images/HospiceCareCenter.JPG

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terça-feira, 13 de abril de 2010

O transtorno bipolar: uma introdução rápida II

Impacto do transtorno bipolar

O impacto do transtorno bipolar pode ser observado em vários aspectos da vida dos pacientes. Enquanto que a fase maníaca é mais aparente socialmente, a fase depressiva, com seus sintomas de tristeza persistente, parece causar maior prejuízo funcional. Merikangas et al (2007) estudou diversos pacientes com diagnóstico de bipolar (todos os diagnósticos) e notou que 87% dos que referiram episódios depressivos no ano anterior apresentaram prejuízo no desempenho (trabalho, vida social, atividades de prazer, responsabilidades de casa e familiares), quando comparados com 57% que apresentaram um episódio maníaco ou hipomaníaco no ano anterior.

Devido a ser uma doença que afeta indivíduos que estão a começar suas vidas, o transtorno acarreta prejuízos sociais, educacionais e no desenvolvimento das carreiras, o que pode explicar porque o diagnóstico está associado a maiores níveis de desemprego e piores níveis escolares quando comparado à população geral (Merikangas et al, 2007).
Em 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava que o transtorno bipolar era a quinta causa de anos vividos com debilidades entre indivíduos de 15 a 44 anos e a nona causa de anos vividos com debilidades em indivíduos de todas as idades (OMS, 2001). Além disso, a doença é associada a taxas aumentadas de mortalidade por causas "naturais" como doenças cardiovasculares, doenças cerebro-vasculares, problemas gastrointestinais e doenças endócrinas (como o diabetes). Até 50% dos pacientes com o transtorno podem apresentar tentativas de suicídio e morte por suicídio pode chegar a 25% no início da doença (Valtonen et al, 2005).

Os pacientes com transtorno bipolar são usuários pesados dos sistemas de saúde, tanto cuidados primários quanto serviços especializados de psiquiatria. Os americanos são famosos por realizar estudos de farmacoeconomia, no qual o impacto de uma doença em específico é medido em dólares. Estes estudos envolvem os custos do tratamento diretamente (medicamentos, internações) e custos indiretos (como anos perdidos de trabalho e impostos, depredações causadas por atos antissociais, produtividade reduzida, mortalidade em excesso por suicídio, etc). Begley e colaboradores (2001) estimaram que os custos diretos e indiretos do tratamento do transtorno bipolar refratário (que não melhora com medicamentos), que tenha se iniciado em 1998 poderia ser $600.000 dólares (em 1998, mais ou menos 1.054.199,93 Reais ou 441 631.091 Euros). O custo direto do tratamento era responsável por apenas 20% desta quantia.

Metas futuras no transtorno bipolar

Como o transtorno bipolar apresenta sintomas depressivos, muitas vezes ele é confundido e diagnosticado como depressão. Outros diagnósticos equivocados nestes pacientes incluem transtornos de personalidade (borderline), TDAH, transtornos de ansiedade, etc. Infelizmente o diagnóstico equivocado do bipolar pode ter repercussões no curso da doença: Um paciente bipolar não diagnosticado está a perder anos de produtividade e o tratamento inadequado não impede as flutuações do humor. Como escrevi anteriormente no primeiro post desta série, certos pacientes que apresentam muitas fases de alterações do humor podem tornar-se cicladores rápidos, com menor tempo de remissão de sintomas, acarretando maior prejuízo e dificultando o tratamento.

Infelizmente não há provas específicas em psiquiatria para o transtorno e muitas vezes o médico diagnostica o transtorno bipolar como depressão no início da doença porque o paciente apenas apresentou fases depressivas (só posteriormente apresenta uma fase maníaca ou hipomaníaca). Este é um erro honesto. Melhores ferramentas diagnósticas são necessárias na área, mas novas opções terapêuticas também são urgentes. Por exemplo, a grande maioria dos medicamentos em oferta hoje foi aprovada para o tratamento da mania aguda e agem melhor nesta fase do que na depressiva (apesar do bipolar ter predominância de episódios depressivos). O tratamento de manutenção de longo prazo também é de certa forma limitado já que a maior parte dos estabilizadores de humor (lítio, divalproato de sódio, carbamazepina e lamotrigina) são mais eficazes em prevenir a fase maníaca do que a fase depressiva. Muitos pacientes estabilizam "abaixo" da linha de humor eutímico (humor normal), ou seja, eles estabilizam levemente depressivos, o que acarreta prejuízos funcionais e angústia e sofrimento. Esta é uma importante causa de abandono de tratamento (especialmente nos bipolares tipo II), e muitos relatam que pararam o estabilizador de humor pois queriam ter "mais energia" ou "sentir-se melhor". Além disso os medicamentos disponíveis hoje tem sérios problemas de tolerabilidade com efeitos colaterais gastrointestinais e sintomas associados ao Sistema Nervoso Central. Os antipsicóticos (utilizados para conter a agitação e os sintomas psicóticos da fase maníaca) apresentam diversos efeitos colaterais e mesmo os de nova geração apresentam diversos avisos quanto a sedação, ganho de peso e alterações metabólicas.

Referências:

ResearchBlogging.org
Merikangas KR, Akiskal HS, Angst J, Greenberg PE, Hirschfeld RM, Petukhova M, & Kessler RC (2007). Lifetime and 12-month prevalence of bipolar spectrum disorder in the National Comorbidity Survey replication. Archives of general psychiatry, 64 (5), 543-52 PMID: 17485606

OMS (2001). The World Health Report 2001: mental health: new understanding, new hope. Disponível em http://www.who.int/whr/2001/en

Valtonen, H., Suominen, K., Mantere, O., Leppämäki, S., Arvilommi, P., & Isometsä, E. (2005). Suicidal Ideation and Attempts in Bipolar I and II Disorders The Journal of Clinical Psychiatry, 66 (11), 1456-1462 DOI: 10.4088/JCP.v66n1116

Fotos:
http://www.newjerseydisabilitylaw.com/new-je2.jpg

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segunda-feira, 12 de abril de 2010

O transtorno bipolar: uma introdução rápida

O transtorno bipolar compartilha sintomas com a depressão major, mas na verdade é definido por episódios de mania ou hipomania.



A depressão pode incluir sintomas afetivos como tristeza pervasiva (humor depressivo que não melhora), falta de prazer e interesse em atividades antes prazeirosas (anedonia/apatia) e irritabilidade (mais comum em crianças e adolescentes). Os sintomas cognitivos do quadro depressivo incluem baixa auto-estima e concentração, indecisão, sentimentos de culpa e pensamentos suicidas, além de sintomas físicos como retardo psicomotor ou agitação, insônia ou hipersonia, e reduções no apetite e energia.
É importante lembrar que nem tudo que tem listras é zebra e outras doenças e situações de vida podem apresentar-se com os sintomas descritos acima, por isso apenas um profissional da área pode realmente definir um diagnóstico de pressão.

De certa forma, a mania é uma imagem refletida da depressão e os sintomas podem incluir humor eufórico e expansivo ou irritável, sintomas cognitivos como aumento da auto-estima, distraibilidade e fuga de pensamentos (quando os pensamentos ficam tão rápidos que o paciente não consegue manter controle sobre eles, mudando de um assunto para o outro), e sintomas comportamentais como aumento da atividade psicomotora e impulsividade. Um sintoma muito distintivo (mas nem sempre presente) é uma necessidade reduzida de horas de sono: o paciente que antes dormia 8 horas dorme apenas 2 horas por noite, por exemplo, e acorda descansado. Embora o paciente tenha muita energia, de forma geral há uma desorganização do comportamento (justamente pelo excesso de atividade) e embora o paciente comece muitos projetos, dificilmente os termina. Da mesma forma que na depressão major, outras doenças, e até mesmo certos medicamentos (como corticóides, anorexígenos, anfetaminas) podem causar sintomas maníacos (sintomas típicos da mania) e o quadro não pode ser diagnosticado como transtorno bipolar.

Já a hipomania não é tão severa quanto a mania e geralmente é caracterizada como "uma mania" leve a moderada". Inclusive encontramos pacientes muitas vezes com melhora da função (término de projetos iniciados) ao invés de deterioração.

Prevalência

O transtorno bipolar (em uma abordagem bastante ampla e vaga, incluindo todos os subdiagnósticos) tem uma prevalência na comunidade de 4%. Ou seja, a cada 100 pessoas, 4 podem apresentar o transtorno. Em geral 1% da população apresenta o transtorno bipolar tipo I (vide abaixo), 1% apresentam o tipo II, e 2% apresentam ciclotimia ou transtorno bipolar não especificado (Merikangas et al, 2007).

Não há qualquer evidência de alteração da prevalência do transtorno em raças ou etnias:brancos, negros, índios, asiáticos, etc tem a mesma prevalência (Merikangas et al, 2007). Sexo também não faz qualquer diferença na prevalência, mas aparentemente as mulheres tem maior risco para serem cicladoras rápidas (vide abaixo) e a apresentar sintomas mistos (idem) do que os homens (Tondo e Baldessarini, 1998). O pico de início dos sintomas para todos os transtornos bipolares varia do final da adolescência até o adulto jovem e mais de dois terços dos pacientes apresentam os primeiros sintomas antes dos 18 anos de idade (Weissman et al, 1996).

Os subtipos do transtorno bipolar

Transtorno bipolar tipo I


O tipo I diferencia-se dos outros tipos pela presença de pelo menos um episódio maníaco ou episódio misto. No episódio misto, estão presentes tanto os sintomas de um episódio maníaco e de um episódio depressivo ao mesmo tempo (ocorrem no mesmo dia). Embora episódios depressivos não sejam necessários para o diagnóstico, eles são vistos na maioria dos pacientes. Ou seja: apenas a fase maníaca (sintomas de euforia) é suficiente para se caracterizar como bipolar tipo I. Como dito acima, o transtorno ocorre de forma igual nos dois sexos mas nas mulheres o primeiro episódio tende a ser depressivo e nos homens, maníaco. Em geral 90% dos pacientes com bipolar tipo I terão episódios recorrentes, com as fases de remissão tornando-se cada vez menores entre os episódios (quanto maior a idade e maior o número de episódios na vida, maior tendência a ter mais episódios com encurtamento da fase de remissão) (APA, 2000). Em geral, uso de substâncias (drogas), transtornos de ansiedade e em menor grau, transtornos alimentares e déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) podem ser comórbidos com o transtorno bipolar tipo I (McIntyre et al., 2004)


Transtonor bipolar tipo II


O tipo II é caracterizado por um ou mais episódios depressivos e pelo menos um episódio hipomaníaco. O transtorno tipo II parece ser mais comum em mulheres e estas parecem apresentar mais episódios depressivos ou hipomania disfórica (humor irritável) enquanto que os homens apresentam mais episódios hipomaníacos "puros" (euforia leve).
Quando se olha o gráfico, uma pessoa pode pensar que o bipolar tipo II é mais leve já que a hipomania não é tão grave quanto a mania e psicose é rara neste subtipo (embora os pacientes possam apresentar depressão psicótica). Entretanto, o tipo II não deve ser subestimado já que o peso do episódio depressivo na vida do paciente parece ser mais substancial que no bipolar tipo I. As taxas de ideação e tentativa de suicídio são altas nos dois tipos e no tipo II a depressão parece durar mais e ser mais clinicamente significativa do que no tipo I.
Pacientes cicladores rápidos (que apresentam pelo menos 4 episódios de alteração do humor por ano, geralmente refratários a tratamento) são mais comuns no tipo II. Comorbidades comuns incluem uso de substâncias, ansiedade e em menor grau, transtornos alimentares, TDAH, transtorno disfórico pré-menstrual e personalidade borderline.
Transtorno ciclotímico

O transtorno ciclotímico é caracterizado por um padrão recorrente de episódios hipomaníacos e episódios depressivos leves a moderados (APA, 2000). Os sintomas são mais leves (não preenchendo critérios diagnósticos para mania ou depressão major) mas o distúrbio do humor é crônico e os pacientes nunca estão livres de sintomas por mais do que 2 meses em um período de dois anos. Comparado aos bipolar I e II, a ciclotimia tem maior frequência, mas menor amplitude nas alterações do humor. Embora não haja diferenças entre os sexos, mais mulheres procuram ajuda do que homens e em geral os pacientes não vão ao médico com queixas de humor, mas por quadros comórbidos como transtornos de ansiedade, uso de substâncias e transtornos de personalidade. Em geral, 15 a 50% dos pacientes diagnosticados com transtorno ciclotímico progridem para bipolar tipo I ou II (mais comumente).

Transtorno bipolar não especificado

Esta é uma categoria residual, na qual se diagnosticam pacientes com aspectos bipolares que não preenchem critérios específicos para os tipos acima descritos. Por exemplo, um paciente que tem diversos episódios hipomaníacos mas nenhum depressivo, episódios que duram pouco tempo, etc.

Este post continua aqui

Fotos: http://i.ehow.com/images/a04/q4/0k/bipolar-disorder-genetic-800X800.jpg
Gráficos: meus mesmo

Referências
ResearchBlogging.org
American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, Text Revision. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2000

Merikangas, K., Akiskal, H., Angst, J., Greenberg, P., Hirschfeld, R., Petukhova, M., & Kessler, R. (2007). Lifetime and 12-Month Prevalence of Bipolar Spectrum Disorder in the National Comorbidity Survey Replication Archives of General Psychiatry, 64 (5), 543-552 DOI: 10.1001/archpsyc.64.5.543

Tondo L, Baldessarini RJ. Rapid cycling in women and men with bipolar manic-depressive disorders. Am J Psychiatry. 1998;155(10):1434–1436. Texto completo disponível aqui.

Weissman, M. (1996). Cross-national epidemiology of major depression and bipolar disorder JAMA: The Journal of the American Medical Association, 276 (4), 293-299 DOI: 10.1001/jama.276.4.293

McIntyre, R., Konarski, J., & Yatham, L. (2004). Comorbidity in bipolar disorder: a framework for rational treatment selection Human Psychopharmacology: Clinical and Experimental, 19 (6), 369-386 DOI: 10.1002/hup.612

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sexta-feira, 9 de abril de 2010

Pedófilo é gente?

Coluna da revista Época que vale para meditar sobre o assunto. O original pode ser lido aqui.

05/04/2010 - 08:52 - Atualizado em 05/04/2010 - 08:55



Pedófilo é gente?
É preciso reconhecer a face humana daquele que nos horroriza


Eliane Brum
ebrum@edglobo.com.br
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

 Li muitas reportagens e artigos sobre pedofilia desde que estourou o mais recente escândalo da Igreja Católica. O tema é difícil para mim. Decidi escrever sobre ele apenas porque me parece que um aspecto foi esquecido – ou quase – nas inúmeras ótimas abordagens. O sofrimento. Pedófilos não são monstros, como a maioria de nós preferiria. São gente. E muitos deles – não todos – sofrem pelos atos que cometeram. E preferiam não ser o que são.


Para quem estava em Marte nas últimas semanas. A polêmica aumentou de tom depois de o New York Times denunciar que o atual papa, Bento XVI, teria encoberto os crimes do padre Lawrence Murphy, nos Estados Unidos, quando ainda era cardeal. O padre, hoje morto, é acusado de abusar de 200 meninos surdos. O suposto envolvimento do papa na ocultação da violência é negado com veemência pelo Vaticano. As denúncias de pedofilia cometidas pelo clero católico continuam, nos Estados Unidos e em diferentes países da Europa. Em algumas delas, Bento XVI tem sido acusado de encobrir os casos ou demorar a tomar providências em períodos anteriores ao papado.


Interessa-me aqui falar menos da Igreja Católica e do papa – e mais de nosso olhar sobre a pedofilia e o abuso sexual. Nunca faz bem para a compreensão de problemas complexos dividir o mundo entre bons e maus, bandidos e mocinhos, monstros e homens. A vida fica supostamente mais simples, mas é uma simplicidade falsa, já que nada se resolve se não encaramos a humanidade daquele que nos provoca horror.


O abuso sexual cometido contra crianças nos horroriza. E acredito que nos horroriza por várias razões, algumas delas óbvias. Mas também porque a maior parte dos abusos é infligida dentro de casa, por familiares. Os abusadores mais frequentes são pais, padrastos, tios, primos, irmãos. Algumas vezes mulheres: mães, madrastas, tias, primas, irmãs.


As estatísticas mostram que as mulheres abusariam bem menos que os homens, mas há dúvidas sobre isso. Como afirma uma psicanalista com quem conversei: “Às mães e às mulheres, em geral, são permitidas algumas liberdades com os filhos, enteados, sobrinhos. Alguns comportamentos parecem mais naturais às mulheres que aos homens. Me parece que o abuso cometido por mulheres é ainda mais mascarado. No presídio feminino onde eu trabalho, há uma ala para abusadoras. E ela está cheia”.


O fato é que o abuso sexual está sempre muito mais perto do que gostaríamos. E, quando paramos para pensar com honestidade, em geral conhecemos alguém próximo que foi abusado ou abusou. E muitas vezes nós também silenciamos.


Em 1997, percorri o Rio Grande do Sul para fazer uma grande reportagem sobre abuso sexual infantil. Eu não queria entrevistar apenas as vítimas, queria escutar também os abusadores. Alguns na cadeia, outros seguindo a vida nas ruas. Nunca me recuperei desta reportagem. Por causa dos horrores que ouvi – e vi. Mas principalmente por causa da quantidade e da intensidade da dor. Eu esperava o sofrimento das vítimas. Nada me preparou para o sofrimento dos “monstros”. Não de todos, é preciso dizer. Há aqueles que não têm conflitos – e, portanto, não sofrem. Mesmo estes, continuam humanos.


Encontrei abusadores despedaçados pelo que tinham feito – e pelo que tinham vontade de continuar fazendo. Fora a cadeia, não havia nada para impedi-los de seguir abusando. E alguns deles queriam ser impedidos. A prisão impede de abusar, mas sem ajuda e tratamento, é muito difícil não reincidir quando saem dela. Se a estrutura de assistência às vítimas de abuso sexual é precária, para abusadores ela é quase nula.


É bem difícil olhar com compaixão para um homem ou mulher que usou de sua autoridade e poder para abusar sexualmente de uma criança. E gozou exatamente deste poder total sobre a vítima, inteiramente submetida ao seu desejo. Mas acho que precisamos tentar. Lembro de ter ficado em conflito com meus sentimentos. Porque nos casos em que foi possível, eu escutava a dor de ambos – da vítima e de quem a violou. Em alguns casos, ambos sofriam de forma atroz. Não se trata de relativizar a responsabilidade de quem abusa. Estou apenas apontando que pode existir sofrimento neste percurso – e não apenas bestialidade, ainda que a bestialidade seja sempre humana.



Dois abusadores me marcaram mais. Um deles era uma mulher – o único caso feminino que encontrei – que havia feito sexo com o filho de 14 anos. O menino estava destroçado. Ele me disse: “Eu queria parar a minha mãe, mas ficava com dó de dar um tapa nela. Nunca vou perdoar meu pai por me deixar sozinho com ela. Eu só quero morrer”. A própria mãe me contou que o filho fugia, que um dia o arrancou de debaixo da cama, onde havia se escondido dela. No caso do garoto, o sofrimento era ainda mais avassalador porque não havia como negar que ele sentiu desejo – ou não teria tido ereção.


O desejo da vítima não é algo tão raro em casos de abuso. Mas é muito difícil para as vítimas lidar com ele sem se sentirem culpadas ou responsáveis. O abusador manipula este sentimento: “Você chora, mas você está gostando”. Quando eu perguntava a esta mãe por que tinha infligido o incesto ao filho, ela repetia: “Eu fiz para salvá-lo”. Nem a mãe nem o filho tinham qualquer assistência.


O outro abusador que nunca pude esquecer foi um adolescente de 15 anos. Ele havia molestado sua meia-irmã de três anos. “Eu não queria machucar”, ele repetia. E talvez não quisesse mesmo. Não sei. Enquanto entrevistava o adolescente, familiares o chamavam de monstro. Seus pais só concordavam em um fato: preferiam que ele estivesse morto. Poucas vezes vi alguém tão só no mundo. Se era mesmo um monstro – era um bem desamparado.


É difícil ter compaixão, eu sei. Mas há algo na história destes dois que pode nos ajudar a ampliar nosso olhar. A mulher que violou o filho havia sido estuprada pelo próprio pai, aos 7 anos. E, depois da violência, foi retirada de casa e passou a vida trabalhando como doméstica na casa de estranhos. O adolescente que abusou da meia-irmã fora violado aos 2 anos. No caso dele, o mesmo pai que o chamava de monstro havia abusado dele quando era pouco mais que um bebê. E nunca foi punido por isso. Este pai era um pedófilo que teve de deixar a vizinhança porque dava balas a garotinhas para masturbá-lo. Quando o pai saiu de casa, a mãe culpou o filho e o enviou para a casa da avó.


Os dois abusadores que acabamos de odiar, portanto, teriam nossa compaixão se voltássemos alguns anos no tempo. Se voltássemos à época em que eram crianças chorando depois de terem sido arrebentadas pelos respectivos pais. A monstra seria uma garotinha estuprada e, depois, jogada na casa de estranhos para trilhar uma vida de trabalho doméstico infantil. O monstro seria um bebê violado também pelo pai e depois punido pela violência sofrida ao ser separado da mãe.


Quando nos dispusemos a enxergar além da primeira camada, os sentimentos fáceis desaparecem. E começam os conflitos. Acredito que são os conflitos que nos levam além.


Os pesquisadores do tema discordam sobre a relevância da repetição no quadro do abuso sexual. Alguns dizem que é um traço frequente, outros que nem tanto. Nos casos que investiguei, como repórter, foi marcante. Não significa que todas as crianças abusadas, ao crescer, serão abusadoras se não tiverem ajuda. Cada pessoa vai elaborar a violência que sofreu – diferente para cada uma em seu significado e suas circunstâncias – de maneira única.


É possível afirmar que, na história de uma parcela dos abusadores, há histórico de abuso sexual na infância. Um dos pesquisadores que me ajudava na reportagem cuidava de um caso que fora confirmado em pelo menos quatro gerações: o bisavô, o avô, o pai e agora o filho, todos tinham sido violados e violaram sua respectiva prole. Neste caso, sempre meninos. A esperança do psicólogo era conseguir quebrar esta linhagem de repetição com responsabilização e tratamento.


Outro traço comum e igualmente terrível é a trajetória das mães das meninas violadas. Parte delas também sofreu abuso na infância. Sem nunca ter recebido assistência, ao eleger um companheiro, escolhe inconscientemente um abusador. E, claro, não consegue proteger suas filhas. Estas mães são responsáveis pelo que acontece em suas casas. Não há dúvida sobre isso. Mas são más? Também elas são monstruosas e merecem nosso escárnio?

Lembro de duas mulheres – mãe e filha. Quando as entrevistei, a mãe tinha 37 anos. Havia sido violada pelo pai aos 9 anos. Era uma mulher simples, muito tímida. Ela contou: “Quando eu tinha 12 anos, senti uma coisa mexendo na minha barriga. Achei que era lombriga. Mas era um bebê do meu pai”. Mais tarde, ela se casou. Teve esta filha. E quando a menina completou 9 anos, o pai abusou dela. Quando as encontrei, a garota também tinha uma filha do próprio pai. Viviam todos na mesma casa. Já tinham pedido ajuda ao conselho tutelar e à polícia, mas até aquele momento nenhuma das instituições parecia saber o que fazer com o caso.


Nada é fácil neste tema. O que parece claro é que só há chance para todos se houver uma quebra do silêncio que costuma cercar estes crimes, especialmente quando acontece entre as quatro paredes do lar – ou entre os muros da Igreja Católica e de outras instituições. Em casos de violência contra crianças, os adultos precisam responder pelos seus atos – ou por ter encoberto a violência de terceiros. Mas é preciso mais do que interromper e punir: é necessário amparar e ajudar vítimas e algozes a elaborar os atos que sofreram ou os que cometeram, com tratamento e de todas as maneiras possíveis. Ou tudo poderá se repetir, num ciclo interminável de sofrimento.


Para quem estiver disposto a olhar para a face do abusador e nela reconhecer um homem – e não um monstro – recomendo um filme excepcional. Com uma interpretação magistral de Kevin Bacon, O lenhador (The Woodsman, 2004) é um filme delicado e corajoso, fácil de achar em qualquer locadora. Seu mérito é não reduzir a vida a uma batalha entre monstros e homens. Ao acompanharmos a trajetória do personagem principal, compreendemos que o pior monstro é o homem que o habita. A ele e a todos nós, de diversas maneiras.


O papa e sua igreja – sempre mais humanos e terrenos do que os fiéis e eles mesmos gostariam – vivem um momento delicado. Penso que, para além das obrigações legais e éticas de qualquer cidadão, o que faltou aos representantes do clero que sabiam o que acontecia e nada fizeram foi um dos pilares do cristianismo: compaixão. Pelas vítimas. E também pelo pedófilo. Acredito que o padre Lawrence Murphy e todos os seus colegas que cometeram o mesmo crime mereciam a compaixão de serem impedidos, também pela sua igreja, de continuar violando crianças.


(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

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quinta-feira, 8 de abril de 2010

Dois vídeos sobre neurociências

Indicado por um colega psiquiatra no twitter: Dois vídeos excelentes sobre como o cérebro funciona.

O cérebro, neurônios e neurotransmissores (em inglês): Como pensamos



De axônios a tratos: Uma jornada pelo circuito cerebral
(From axons to tracts: A journey through the brain's wiring )

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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Cuidado com o curandeirismo virtual

Um ditado inglês diz que ser adulto é não se chocar com mais nada. Entretanto a malícia é tamanha que não consigo conter meu espanto.

Eu criei este blog ano passado para discutir temas em saúde mental na minha língua materna. Um dos objetivos era utilizar da internet (este meio que socializa e uniformiza o conhecimento) para explorar temas que nunca havia discutido em minha residência em psiquiatria, como sexologia (que vi em Portugal) e neuropsiquiatria de ponta (na Inglaterra). Outro era criar mais um meio no qual as pessoas que tivessem dúvidas sobre a psiquiatria, uma área ainda envolta em preconceito e medo, encontrassem informação detalhada numa linguagem leiga. E por fim, sou mesmo muito opinionada e ter um veículo no qual possa escrever livremente o que penso de terapias alternativas e outros assuntos polêmicos é bastante catártico.

Conforme o blog foi ganhando momento, conheci muitos outros blogueiros e passei a receber diversos emails. Alguns de ex-pacientes e estudantes, que me encontraram e outros de desconhecidos, com dúvidas sobre um ou outro assunto. Conforme está sugerido no cabeçalho do blog, assim que possível disponho-me a responder as dúvidas ou a apontar o caminho.

Recentemente algumas pessoas passaram a me escrever com dúvidas sobre seus médicos e tratamentos, muitas vezes em longos e detalhados emails. Como disse antes, assim que possível respondo a todos, mas estabeleci algumas regras básicas nestas situações, norteadas por princípios éticos:
  • Nunca se faz diagnóstico pela internet. Diagnóstico pressupõe avaliação, o que não ocorre no meio virtual. Muitos emails são extremamente detalhados e trazem histórias de vida interessantíssimas. Mesmo assim, uma avaliação psiquiátrica consiste não só no conteúdo do que é dito, mas na forma como este conteúdo é entregue. Olhares, movimentos corporais, pausas, tiques e outros são tão parte do exame psiquiátrico quanto a queixa do paciente. Enquanto que no cardiologista a queixa principal (dor), e a história da queixa (quando começou, onde, etc) são suficientes para se formular uma hipótese diagnóstica, o mesmo não vale para a psiquiatria. A observação do paciente é fundamental.
  • Nunca se prescreve para alguém que nunca se avaliou. Este é um princípio básico do bom médico. Muitas vezes vi colegas prescreverem medicamentos para a mãe de alguém (que nunca foi vista por eles). Segundo a lei, colocar algo na xícara de café ou na comida sem que a pessoa saiba é prática de envenenamento e o médico pode ser considerado cúmplice se prescreveu o medicamento para alguém que não sabia que estava a usá-lo. Da mesma forma, prescrever ou discutir uma prescrição pela internet ("seu médico está errado, você deveria utilizar o medicamento X em vez do Y") é extremamente antiético.
  • Mesmo a discussão de uma hipótese diagnóstica é complicada: O leitor pode notar que diversas vezes fiz o uso da expressão hipótese diagnóstica. Isso é decorrente do fato de que em medicina (como em todas as áreas científicas) o que se faz são hipóteses que depois são ou não colocadas a teste. Quando um clínico geral diz "parece ser pneumonia" (hipótese) ele manda o paciente para o Raio-X ou ausculta o pulmão. Estes são testes para confirmar ou negar a hipótese estabelecida. O mesmo ocorre na psiquiatria. Um diagnóstico não é um rótulo que a pessoa tem que usar colado na testa para o resto da vida. É uma hipótese que vai ser testada com o tratamento. Infelizmente ainda não existem testes diagnósticos fidedignos na área e a prova do tratamento é o que testa melhor se uma hipótese é ou não verdadeira. Quem assiste a série americana House M.D. entende melhor o que estou a dizer aqui, pois os criadores da série foram muito felizes ao demonstrar como é mesmo uma arte o ato de diagnosticar e como provar esta hipótese pode ser difícil.

House M.D.

O objetivo deste post não é impedir que o leitor me contacte se tiver dúvidas, mas esclarecer, ajudar a separar o joio do trigo:

Recentemente li um post em um blog de ciências brasileiro que retoma a discussão sobre "bicarbonato cura o câncer/cancro". Para quem não se lembra, há uns dois ou três anos atrás um ex-médico italiano (o registro dele foi cassado por falta de ética em seus estudos) alegou que tinha encontrado a "cura do câncer" utilizando o simples bicarbonato de cozinha. Diversos estudos sérios surgiram contestando o achado do médico (que dizia que o câncer era provocado por um fungo) e o tema virou assunto de spams, que vira e mexe recebemos na caixa de entrada de nossos emails.

No blog RNAm, escrito por dois doutorandos em biologia, que faz parte da comunidade Reseach Blogging, os autores escreveram um post bastante polêmico, de título "Bicarbonato de sódio FUNCIONA contra o câncer". Nele, os autores que anteriormente haviam discutido o teor dos spams sobre bicarbonato de forma ácida discutem dois artigos que encontraram que o aumento do pH pode reduzir metástases. Os artigos praticamente não tem nada a ver com o que o médico italiano proclamava. Eles discutem testes in vitro e a via de administração do bicarbonato é bastante específica.

O post foi suficiente para causar uma inundação de comentários de fé. Desde veterinários, biólogos e outros a chamarem os autores de nomes de baixo calão (uma tristeza) a pessoas bem intencionadas mas completamente perdidas que acreditam (tem fé) que o bicarbonato funciona e a ciência é que tem que provar que ele não funciona.

Eu já havia escrito num post anterior como o método científico funciona. Basicamente, quem propõe a teoria é quem deve realizar testes para prová-la (o ônus da prova cabe ao autor) e NADA é provado em ciência. NUNCA. Não existem verdades absolutas no meio científico. Verdade absoluta é uma questão de religião. Por exemplo: "Deus existe". Se você acredita em Deus, isto deve bastar para si e para sua fé. A religião exige uma crença, um salto de fé, no escuro, uma crença em Deus, sem provas. Já a ciência exige que quando se faz uma afirmação ou uma negação, que se realize provas para testar a veracidade da hipótese.

Então quando alguém diz que acredita em homeopatia, po exemplo, já saiu do campo científico e entrou no campo da fé. É um direito seu fazer isso, mas esta forma de discurso não pode ser utilizada no meio científico.

O que me chocou mesmo foi ver como existem pessoas inescrupulosas que se utilizam da dor alheia para ganhos. Nos comentários do tal post sobre bicarbonato uma pessoa que se entitula "médico europeu" destaca-se pelo tom agressivo no qual responde aos autores e por só escrever em caixa alta/caps lock.  Ao acompanhar esta pessoa virtual vê-se que ele está ali e em vários blogs de ciência para "vender" seu tratamento contra o câncer/cancro baseado em bicarbonato.

Talvez alguém mais malicioso pense que se uma pessoa se propõe a buscar tratamento da "cura do câncer" pela internet e forneça seu cartão de crédito a um "médico europeu" merece mesmo ser lesada. Só quem perdeu alguém na flor da idade para esta doença ou viu o desepero de familiares e amigos de pacientes com câncer entende o quão frágeis e vulneráveis a este tipo de "cura" estas pessoas são.

Não seja vítima de pulhas virtuais e não brinque com seu bem mais precioso, sua saúde. Aprenda a separar o joio do trigo no que tange a profissionais e mesmo blogs de ciência.
  • Desconfie de quem faz "diagnóstico" pela internet
  • Desconfie de quem cobra para responder suas perguntas ou dúvidas
  • Desconfie de quem "prescreve" pela internet
  • Desconfie de qualquer medicamento vendido pela internet. Confirme no site da ANVISA (Brasil) ou no Prontuário Terapêutico (Portugal) que o mesmo é aprovado para venda.
  • Nunca compre ervas ou terapias alternativas pela internet. Você pode dizer que sabe mesmo como estes produtos foram obtidos ou manufaturados?
  • Aprenda o método científico. Alguns médicos discordam, mas pacientes bem informados e que entendem o tratamento tem melhor prognóstico. Muitos sites explicam como se chegam a hipoteses diagnosticas e como a revisão por pares (peer review) é importante para o avanço da medicina e ciência em geral. Pergunte sempre o porque de um medicamento para sua doença e não outro. Você está no seu direito.

Para quem quiser ler os artigos citados sobre acidez/redução do pH em metástases:

ResearchBlogging.org
Robey IF, Baggett BK, Kirkpatrick ND, Roe DJ, Dosescu J, Sloane BF, Hashim AI, Morse DL, Raghunand N, Gatenby RA, & Gillies RJ (2009). Bicarbonate increases tumor pH and inhibits spontaneous metastases. Cancer research, 69 (6), 2260-8 PMID: 19276390

Silva AS, Yunes JA, Gillies RJ, & Gatenby RA (2009). The potential role of systemic buffers in reducing intratumoral extracellular pH and acid-mediated invasion. Cancer research, 69 (6), 2677-84 PMID: 19276380

Fotos:
http://images2.fanpop.com/images/photos/5800000/House-M-D-greys-md-5836179-450-600.jpg
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