sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aspectos psiquiátricos do cuidado de pacientes terminais (cuidados paliativos) II

Diagnósticos psiquiátricos – Prevalência, etiologia e como reconhecê-los, parte II (parte I aqui)

Delírium

O delírium é uma das principais causas da consulta de psiquiatria em hospitais gerais. Para um familiar e mesmo membros da equipe clínica, é muito difícil ver pacientes agitados, delirantes, com alucinações causadas por rebaixamento do nível de consciência. O delírium (que é uma entidade diferente do delírio, crenças irredutíveis que ocorrem com clareza de consciência) é provocado por uma alteração do sistema nervoso central (SNC) em resposta a desequilíbrios metabólicos, doenças cardiovasculares, arritmias ou quaisquer processos que comprometam o bom funcionamento cerebral. Sua ocorrência é bastante comum nos hospitais mas o mesmo é subdiagnosticado. É importantíssimo caracterizar e diagnosticar este quadro pois os processos subjacentes que levam ao seu desenvolvimento envolvem risco de vida para o paciente.
Assim, não é de se estranhar que pacientes terminais, cujos órgãos e sistemas estão a falir lentamente, apresentem prevalência elevada deste quadro. Segundo Erkinjutti (1986) 9% dos pacientes maiores de 55 anos no momento da admissão no hospital geral apresentam demência e 41% apresentam delírium. Além disso, cerca de 85% dos pacientes terminais apresentam o quadro.

Os fatores de risco específicos para a ocorrência do delírium incluem:
  • Idosos
  • Pacientes no pós-operatório
  • Pacientes com câncer
  • Pacientes com AIDS
  • Fatores etiológicos
    • Problemas metabólicos
    • Efeito colateral dos medicamentos
    • Anóxia (privação de oxigênio)
    • Abstinência de drogas
    • Infecções
Em 30% dos delírios as causas não são encontradas
O delírium pode ser classificado em (Lipowski, 1990):
  • Hiperativo (agitação, excitabilidade, distúrbios do comportamento - amedrontado ou agressivo, paranóia, alucinações)
  • Hipoactivo (depressão aparente, sedação, sonolência, introspecção, paciente quieto)
  • Misto
Diagnóstico
Geralmente o delírium apresenta um início súbito e tem causas orgânicas (médicas ao invés de psiquiátricas) e é um quadro típico de distúrbio da consciência, humor e percepção. Existem alguns instrumentos que podem ajudar no diagnóstico do quadro como as escalas Delirium Rating Scale (Trzepacz et al, 2001) e Confusion Assessment Method.

Ajustamento


O transtorno de ajustamento é um quadro auto-limitado associado a eventos vitais (ou alterações importantes na vida do paciente) como divórcios, luto, mudança de país, etc. Como uma doença grave e terminal como o câncer causa diversas alterações na qualidade de vida dos pacientes, não é de se espantar a alta prevalência do transtorno nestes doentes. O transtorno de ajustamento, entretanto, tende a ser auto-limitado e associado aos estágios de luto. Alterações biológicas (distúrbios do humor, sono, apetite e concentração) são comuns. Até 24% dos pacientes em hospícios apresentam reações de ajustamento.
Como o transtorno de ajustamento tende a ser auto-limitado, antidepressivos só devem ser administrados em reações severas e prolongadas. NUNCA se deve utilizar benzodiazepinas (calmantes tarja preta) pois os mesmos inibem e “congelam” o processo psicológico de ajustamento. 
Não medicalize! Uma abordagem empática é a melhor solução nestes casos.

Pânico e ansiedade
Na população geral quadros de pânico e transtornos de ansiedade são associados ao sexo feminino, pacientes jovens e de baixo status sócio-econômico. Estes padrões não se aplicam aos pacientes com câncer. 16% dos encaminhamentos para psiquiatria em pacientes terminais dizem respeito a transtornos de ansiedade. Destes, 73% apresentam transtornos de ajustamento e 9% depressão major. Além disso, sabe-se que 21% dos pacientes com câncer apresentam sintomas ansiosos (Derrogatis, 1983). Os sintomas apresentam-se de foma semelhante à população geral e geralmente são comórbidos a quadros depressivos.
Os sintomas ansiosos podem ser devido a 
  • Ansiedade antecipatória à quimioterapia
  • Dor incontrolável
  • Tumores secretores de hormônios e tumores que produzem ACTH (carcinoma de pulmão, por exemplo)
  • Estados de abstinência
  • Secundários a esteróides, broncodilatadores e estimulantes beta-adrenérgicos
Demência

Pacientes demenciados são clientes comuns de hospitais gerais e de enfermarias de cuidados paliativos. Estes pacientes apresentam seus próprios desafios no cuidado em geral, criando:
  • Problemas na comunicação, impedindo consentimento verdadeiramente informado
  • Problemas para apreciação do sucesso das estratégias (ex. tratamento da dor) por parte dos médicos
  • Alta vulnerabilidade ao delirium
  • Distúrbios do comportamento
Estratégias de manejo destes pacientes:

Manejo físico
Otimizar cuidado
Otimizar hidratação e nutrição
Corrigir deficiências vitamínicas e de eletrólitos
Considerar desordens endócrinas como causa
Considerar outras rotas de administração
Usar tão poucos medicamentos quanto possível

Manejo psicológico
Pacientes e cuidadores geralmente ficam aliviados ao serem esclarecidos de que os sintomas psiquiátricos podem ser uma complicação da doença de base (demência). Isto é importante, especialmente no caso de cuidadores de pacientes com delirium, que ficam bastante angustiados por o paciente tornar-se aparentemente “louco”.

ECT
Embora o público em geral tenha muitos preconceitos contra a eletroconvulsoterapia (ECT), ela tem seu lugar nos cuidados paliativos, sendo indicada em pacientes agitados, psicóticos e com sintomas graves de depressão, podendo melhorar o humor de forma mais rápida e com menos efeitos colaterais. Entre as contraindicações do procedimento encontram-se fraturas ósseas patológicas, tumor cerebral primário ou secundário se o paciente já estiver a apresentar crises convulsivas.

Manejo social e ambiental
Ajudar o paciente a organizar seus papéis e resolver conflitos
Ministros, padres, sacerdotes, pastores da religião do paciente podem dar apoio, se esta for a vontade deste
Manejo ambiental:
Número adequado de enfermeiros para garantir a segurança necessária
Ambiente seguro, quieto e que ajude na orientação do doente
Relativos devem fazer visitas breves mas regulares

Psicofarmacologia

Embora muitos quadros de agitação possam ser resolvidos com medidas ambientais descritas acima, manejo adequado da doença de base ou com mudanças nos medicamentos e hidratação, muitas vezes há necessidade de se utilizar medicamentos psiquiátricos específicos:

Antipsicóticos
Alguns são utilizados por seus efeitos antieméticos - reduzem náuseas e vômitos (clorpromazina, levomepromazina, prochlorperazina e metoclopramida). A principal indicação nestes pacientes é a redução da intensidade e duração dos sintomas de delirium atuando em delirium hipo e hiperativo(Breitbant, 1996). O haloperidol continua a ser o gold standart já que causa a maior contenção química possível, dentro da menor sedação, em doses geralmente não maiores do que 2mg/dia. Os atípicos apresentam eficácia comparável, mas sem vantagens significativas. 10-20% dos pacientes com delirium são arresponsivos a intervenções com neurolépticos. O controle só pode ser obtido, nestes casos, com sedação e redução do nível de consciência.Em geral, duas estratégias são mais utilizadas:
• Midazolam
• Propofol IV. O propofol é mais vantajoso nestes casos pois permite o controle do nível de sedação de forma mais fácil e a recuperação é mais rápida.

Psicoestimulantes
Dextroanfetamina (ao café-da-manhã e almoço, 25mg em doses crescentes de forma contínua no curso de dias), metilfenidato, pemolina.
São alternativas para o tratamento da depressão nos doentes terminais (Burns e Eisendrath, 1994) já que apresentam ação mais rápida que antidepressivos (AD). Os psicoestimulantes estão especialmente indicados nos pacientes mais próximos da morte, para os quais a ECT é contra-indicada e os AD demorariam muito a fazer efeito. Como os pacientes são terminais e o tratamento é previsto para não mais que um ano, não há problemas de abuso. Os psicoestimulantes devem ser prescritos com cuidado aos pacientes cardíacos e hipertensos e podem causar insônia, confusão, ansiedade e paranoia.

Opiáceos
Opiáceos são narcóticos, extremamente eficazes no tratamento da dor e pedra base do tratamento paliativo. Entretanto, podem causar depressão respiratória, mas na realidade a tolerância a este efeito ocorre rapidamente, sedação, constipação, confusão, e anormalidades perceptuais.

Corticosteróides
Utilizados como adjuvantes aos analgésicos
Agentes antinflamatórios potentes
Estimulam apetite, reduzem náusea e mal estar
Diminuem os efeitos de pressão em lesões intraespinais e intracranianas
25% dos pacientes experienciam alterações do humor: Se euforia leve, não há necessidade de tratamento. Se ocorrerem sérias alterações do humor deve-se parar o medicamento, reduzir a dose ou trocas para doses equivalentes: dexametasona por prednisolona e vice-versa

Processos psicodinâmicos e psicológicos do cuidado de doentes terminais

Elizabeth Kubler-Ross: Os cinco Estágios de Luto
  1. Negação e choque
  2. Raiva
  3. Barganha
  4. Depressão
  5. Aceitação
Psicodinâmica
No momento da avaliação psiquiátrica, os mecanismos de defesa mais comuns no paciente, na equipe e nos cuidadores vistos no momento da avaliação psiquiátrica são:
  • Negação "Tudo vai ficar bem. Eu sei que posso vencer esta doença
  • Intelectualização “Nós devemos analisar todos os problemas para se chegar às causas desta anemia” - o médico ou o doente preocupam-se com aspectos materiais da doença e detalhes ao invés de focar no fato de que o mesmo está morrendo
  • Racionalização "É claro que ele está com depressão, ele está morrendo” - e a consulta psiquátrica não é solicitada...
  • Deslocamento - O indivíduo fica furioso com a equipe sem qualquer motivo, porque não pode ficar furioso com a injustiça de ter um câncer
  • Projeção “Você não serve para nada. Vocês psiquiatras/psicólogos não conseguem curar nada”
Só se deve realizar intervenções nos mecanismos de defesa quando eles estão a atrapalhar o tratamento. Lembrar que a equipe clínica fica particularmente estressada/angustiada quando a identificação com o paciente é alta (por exemplo, uma enfermeira em fase terminal de câncer).

Crenças religiosas e espirituais

Devem SEMPRE ser permitidas dentro de uma enfermaria de cuidados paliativos pois trazem conforto ao doente e à família

Cuidado da família
Familiares de doentes terminais apresentam maior risco de doenças psiquiátricas e suicídio (tanto antes quanto depois da morte do paciente). Muitas vezes o psiquiatra é chamado para conversar com os familiares e não com o doente:
Avaliação de risco
Educação e suporte por parte da equipe clínica em contato direto com familiares
Consultas adequadas para membros da família com problemas psiquiátricos

Fotos:
http://www.station.lu/images/divers/Arbeiten%20in%20Luxemburg/palliative_care_station_small.jpg
http://www.scumdoctor.com/images/Adjustment-Disorder-Due-To-Hearing-Loss.jpg
http://www.scientificamerican.com/media/inline/blog/Image/Religion_cancer.jpg

Referências:

ResearchBlogging.org

Erkinjuntti, T. (1986). Dementia among medical inpatients. Evaluation of 2000 consecutive admissions Archives of Internal Medicine, 146 (10), 1923-1926 DOI: 10.1001/archinte.146.10.1923

Lipowski ZJ (1990). Organic mental disorders and DSM-IV. The American journal of psychiatry, 147 (7) PMID: 2356880

Derogatis, L. (1983). The prevalence of psychiatric disorders among cancer patients JAMA: The Journal of the American Medical Association, 249 (6), 751-757 DOI: 10.1001/jama.249.6.751

Burns MM, & Eisendrath SJ (1994). Dextroamphetamine treatment for depression in terminally ill patients. Psychosomatics, 35 (1), 80-3 PMID: 8134533

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4 Comentários:

Blogger Thiago Moraes disse...

Bela abordagem Vanessa!
Esse é um tema em q nos, estudantes e medicos, somos muito carentes de conhecimento! o tema "morte" deveria ser amplamente debatido mas é facilmente evitado! resultado disso é o imediato pensamento nos profissionais: "e agora q q eu faço? q q eu falo?" além da frustração de ter "perdido" o paciente, um sentimento constantemente mal elaborado.

Queria discutir com vc sobre a definição etiologica de delirium em q vc diz ter "causas orgânicas (médicas ao invés de psiquiátricas)" ...hmmm então as causas psiquiatricas não são médicas? assim eu fico pensando q psiquiatra não é médico! rsrs
talvez fosse melhor dizer causas organicas ao inves de psicogenicas?
essa eh uma afirmação mt comum entre os psiquiatras! talvez a minha visão de estudante n me permita ver a necessidade de se criar uma certa dicotomia "medico X psiquiatra" mas de fato eh algo q me deixa com a pulga atras da orelha! rsrs

otimo texto vanessa!
um grande abraço!

18 de abril de 2010 às 12:37  
Blogger Vanessa disse...

Caro Thiago

Obrigada pelo puxão de orelhas, realmente tens razão ao questionar o que escrevi. Numa tentativa de explicar melhor o que são "causas orgânicas" já que muitos leigos também acessam o blog eu incorri em um erro que também vivo a criticar!

Durante as aulas do mestrado tive uma aula bastante interessante sobre a antropologia da morte, dada por um psicólogo especialista em psico-oncologia. Vou procurar o material que tenho e elaborar um post sobre o assunto no futuro.

18 de abril de 2010 às 13:30  
Blogger Ercy Soar disse...

Vanessa, muito bom teu post. Vou inclusive repassá-lo a meus alunos de psiquiatria. Sobre a questão da morte, tomo a liberdade de te mandar este link de uma breve reflexão que publiquei. http://tinyurl.com/36xd5fm
Em relação à ressalva feita pelo Thiago, é um problema q não tem solução fácil, e que remonta à velha dicotomia cartesiana entre espírito e corpo. Afinal, o que é psicogênico não deixa de ter seu substrato orgânico, e múltiplas interações com predisposições e outros fatores "biológicos".
Aproveito pra agradecer teus retweets.

24 de abril de 2010 às 23:15  
Blogger Vanessa disse...

Obrigada pelo link e pela participacao! Quando eu escrever algo sobre a antropologia da morte vou cita-lo tbm pois 'e muito pertinente.

Abracos!

28 de abril de 2010 às 10:00  

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