quarta-feira, 14 de abril de 2010

Aspectos psiquiátricos do cuidado de pacientes terminais (cuidados paliativos)

Com a publicação do novo Código de Ética Médica, o cuidado aos pacientes terminais está em foco. O novo Código é explícito ao proibir intervenções desnecessárias para prolongar a vida de um paciente terminal em sofrimento.

Quando ainda era residente, notei como o psiquiatra era constantemente chamado para avaliar pacientes terminais nas enfermarias de clínica geral (cardiologia, endócrino, etc) e enfermarias destinadas a pacientes com câncer/cancro. Muitas vezes via que era chamada mais no sentido de lidar com a ansiedade da equipe clínica ou da família, que esperavam um medicamento "sossega leão" para o doente emaciado e agitado, contido na cama para sua própria segurança. É incrível como essa visão da "psiquiatria de sedação" persiste na medicina brasileira e como os clínicos e a família não estão preparados para lidar com a morte. De fato o psiquiatra tem lugar no cuidado de pacientes terminais, mas longe de ser um técnico ali presente para administrar um anestésico e calar o doente, a avaliação pode trazer benefícios e esclarecer dúvidas.

Em primeiro lugar temos que conceituar a morte. Provavelmente escreverei um post específico no futuro sobre a antropologia da morte mas, de forma geral, embora a população mundial esteja progressivamente envelhecendo mais, paradoxalmente a morte não é aceita como como parte normal da existência. Morrer hoje é um ato médico, no qual muito embora a maioria dos pacientes refira que prefere morrer em casa, a grande maioria das mortes ocorre em hospitais, cercada de aparatos médicos e de certa forma dissociada da nossa consciência. Talvez este afastamento da morte do seio da sociedade seja o responsável pelo fato de a morte não ser vista como fenômeno natural. O mundo atual perdeu os rituais de passagem que asseguravam um processo de luto mais saudável e a morte hoje é mecânica e impessoal.

Na Europa, esta tendência impessoal tem sido refutada com a criação de Hospícios: Em 1967 foi criado o St. Christopher Hospice em Sydenham (na Inglaterra), destinados a receber pacientes terminais e fornecer um cuidado diferenciado e mais humanizado. Embora o nome lembre os manicômios psiquiátricos de antigamente na língua portuguesa, os hospícios são locais de paz e calma, com uma equipe treinada neste tipo de cuidados. Eu conheci o funcionamento de uma destas instituições em Somerset quando perdi um familiar com câncer de estômago há dois anos. O hospício é um misto de hospital e casa: embora conte com equipe clínica e material médico, a decoração é a mais aconchegante possível e os quartos e o layout arquitetônico primam pela busca de belas paisagens e jardins de relaxamento. As salas de espera para os familiares no período de visitas são aconchegantes como uma sala de estar e o hospício dispunha até mesmo de uma cafeteria self-service, onde podíamos fazer nosso próprio chá e comer bolachas disponibilizadas pela equipe por sobre as mesas. O leitor brasileiro deve estar a pensar nos custos de tal local para um paciente terminal e sua família, mas devo lembrá-lo que o sistema de saúde inglês é público e a maioria destas instituições é financiada por Instituições de Caridade ou pelo setor privado, que faz doações em troca de reduções fiscais

exemplo de cuidado paliativo em hospício, com um ambiente mais familiar e aconchegante, para conforto do paciente
Voltando ao assunto do papel do psiquiatra no cuidado destes pacientes...

De fato é verdade que os doentes terminais apresentam altas taxas de comorbidades psiquiátricas (Derogatis, 1983), mas também é importante notar que há um superdiagnóstico de depressão e muito poucos diagnósticos de transtornos de ajustamento e delirium. Assim, como há muita confusão nos clínicos e nos familiares sobre se o paciente está deprimido e como aparentemente este é o diagnóstico mais comumente fornecido aos pacientes terminais, vou começar por ele:

Depressão nos doentes terminais – Prevalência, etiologia e como reconhecê-la


Segundo a literatura científica, 47% de todos os pacientes com câncer/cancro apresentam um transtorno psiquiátrico, dos quais 68% apresentam humor deprimido ou ansioso e 13% apresentam depressão major (Lloyds-Williams, 2001). Em comparação, a população hospitalar (hospital geral) apresenta taxas de depressão em torno de 15% (Mayou e Hawton, 1986). Já a população geral apresenta prevalência de 5 a 7%. Ou seja: as taxas de depressão em pacientes com câncer/cancro terminal não são muito diferentes do que se espera encontrar em um hospital geral (ortopedia, cirurgia, clínica geral). Em geral, 52% dos pacientes em hospícios são referidos ao psiquiatra devido a “depressão”, mas apenas metade destes apresenta o quadro.
Fatores etiológicos que justificam a prevalência duas vezes maior de depressão nesta população:
  • Múltiplas perdas de funcionamento social e físico - uma doença por si só é um "golpe narcísico" e abala a autoconfiança e a ideação de invencibilidade que todos temos. Enfrentar a própria finitude e fragilidade pode levar à depressão
  • Futuro incerto e temido
  • Dor, constipação, problemas metabólicos
  • Efeitos colaterais de fármacos - muitos medicamentos podem reduzir os níveis de neurotransmissores responsáveis pelo humor (como serotonina, adrenalina e dopamina), causando um estado depressivo
  • Efeito direto do câncer a nível de neurotransmissores
Diagnóstico

O ponto chave para um diagnóstico correto de depressão nestes pacientes é observar sintomas psicológicos (humor deprimido, pensamentos negativos, culpa, desesperança e anedonia) ao invés de sintomas físicos (sono, apetite e concentração), que tendem a estar alterados devido à doença e seu tratamento.
Muitas vezes utilizamos escalas de depressão para assegurar e pontuar sintomas depressivos, mas estas não são bons instrumentos nesta população: o enfoque em sintomas somáticos pode levar a falsos positivos.
Os critérios abaixo foram criados para auxiliar clínicos que trabalham com pacientes terminais e são o "gold standard" na avalição de depressão em pacientes terminais:

Critérios de Endicott

A presença de 5 ou mais critérios durante 2 ou mais semanas é altamente indicativo de depressão em pacientes terminais:
  • Aparência amedrontada ou introspectiva
  • Retração emocional ou pacientes menos comunicativos
  • Retardo ou agitação psicomotora
  • Humor deprimido, subjetivamente ou observado
  • Marcada diminuição no interesse ou prazer na maioria das atividades durante maior parte do dia
  • Meditação mórbida persistente, pena de si mesmo ou pessimismo
  • Sentimentos de que não tem valor ou culpa excessiva ou inadequada
  • Pensamentos recorrentes de morte ou suicídio
  • Humor não reativo a eventos ambientais
Continuo o assunto nos próximos posts
Para ler mais: Coluna da revista Época sobre o dia a dia de uma enfermaria de cuidados paliativos no Brasil:
A enfermaria entre a vida e a morte

Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante que curar. Lá, todo dia eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim?

Referências:
 ResearchBlogging.org
Chochinov HM, Wilson KG, Enns M, & Lander S (1994). Prevalence of depression in the terminally ill: effects of diagnostic criteria and symptom threshold judgments. The American journal of psychiatry, 151 (4), 537-40 PMID: 7511875

Derogatis LR, Morrow GR, Fetting J, Penman D, Piasetsky S, Schmale AM, Henrichs M, Carnicke CL Jr. (1983). The prevalence of psychiatric disorders among cancer patients JAMA, 249 (6), 751-757 : 6823028

Lloyd-Williams, M. (2001). Screening for depression in palliative care patients: a review European Journal of Cancer Care, 10 (1), 31-35 DOI: 10.1046/j.1365-2354.2001.00244.x

Mayou, R.; Hawton, K. (1986). Psychiatric disorder in the general hospital The British Journal of Psychiatry, 149 (2), 172-190 DOI: 10.1192/bjp.149.2.172

Foto:
http://www.doh.wa.gov/hsqa/fsl/images/HospiceCareCenter.JPG

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