segunda-feira, 29 de março de 2010

Uma patografia de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas

Com o lançamento do último filme de Tim Burton, Lewis Carroll e seus livros (Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho) estão na mídia e uma colega psicóloga que estudou e trabalhou comigo sugeriu este tema.

Patrícia, este texto é para você e para sua pequenina!

Este post é uma patografia de Lewis Carroll. Patografia é um estudo retrospectivo de "casos clínicos focados na biografia de determinada personalidade famosa portadora de transtorno mental, com objetivo de apresentar elementos psicopatológicos interessantes e o significado destes para sua obra" (ABP, 2000)

Lewis Carroll não era seu verdadeiro nome, mas um pseudônimo literário adotado por Charles Lutwidge Dodgson. Entretanto, para fins de simplificação, vou chamá-lo de Lewis Carroll por todo o texto.

Lewis Carroll

História Pregressa

Carrol nasceu em 27 de janeiro de 1832 na Inglaterra, em uma família do norte conservadora e religiosa. Muitos ancestrais do autor eram oficiais do exército ou clérigos da Igreja Anglicana. Seu avô paterno, um oficial do exército, moreu no campo de batalha quando seu pai ainda era bebê. Seu pai era um bom aluno, com um futuro acadêmico brilhante à sua frente, mas optou por seguir a carreira da igreja e casou-se com sua prima primeira em 1827 e assumiu uma igreja rural. O pai do autor era um homem bastante conservador nas suas visões da igreja e estava constantemente envolvido em disputas políticas.

Carrol nasceu em 1832, em uma frataria de 11 irmãos. Carrol foi o terceiro filho, mas o primeiro filho homem do casal.  As crianças foram educadas em casa. A lista de livros selecionados para seus estudos demonstra uma aptidão literária precoce. Tanto ele quanto seus irmãos sofriam de gagueira, uma condição que influenciou sua vida social nos anos seguintes. Aos 12 anos ele foi enviado para uma escola privada nos arredores de sua casa, na qual parece ter sido feliz. Aos 14 anos, porém, foi enviado para outro colégio do qual escreveu:
"Eu não posso dizer... que qualquer circuntância terrestre me induziria a reviver aqueles três anos novamente... Eu posso honestamente dizer que se pudesse ter ficado seguro... dos problemas à noite e das labutas da vida diária, a vida teria sido comparativamente mais fácil de se levar."
Apesar das dificuldades sociais e pessoais, Carroll era um excelente aluno.

Algumas fontes trazem que a gagueira de Carroll só ocorria quando estava em companhia de adultos, nunca na companhia de crianças, mas há poucas evidências desta teoria. Embora a condição incomodasse o autor grandemente, ela nunca foi suficientemente debilitante para impedir seu desempenho social.

Carroll deixou o colégio aos 17 anos mas apenas ingressou na Universidade de Oxford aos 19 anos. Sua vida nestes dois anos permanece um mistério. Após apenas dois dias na universidade ele recebeu uma carta chamando-o de volta a casa pois sua mãe havia falecido de "inflamação do cérebro" aos 47 anos de idade.

Voltando à universidade, sua carreira oscilava entre altamente promissora e terrivelmente distraída. Em geral, Carroll não estudava muito mas era excepcionalmente dotado e saía-se bem nos testes. Em 1852 ele recebeu um First in Honour Moderations (equivalente a 80% ou mais dos créditos disponíveis) e recebeu uma bolsa de estudos. Um pouco mais tarde, porém, ele falhou em conseguir outra bolsa de estudos, o que atribuiu a sua incapacidade de aplicar-se seriamente com disciplina. De qualquer forma, seu talento como matemático assegurou-lhe uma docência na universidade, posto que ocupou pelos próximos 26 anos. O salário era bom, mas o trabalho tediante.

Desde a juventude Carroll escrevia poesias e contos, gozando de moderado sucesso. Entre 1854 e 1856 seus trabalhos apareceram em publicações nacionais e pequenas revistas. Ainda em 1856, um novo reitor, Henry Liddell, foi nomeado na universidade e trouxe consigo sua família: mulher e filho e três filhas, entre elas Alice. Há diversas evidências de que seus trabalhos foram baseados nesta criança e o poema ao final de Alice no Mundo do Espelho soletra o nome de Alice Liddell. Embora diversas referências a uma Alice real sejam encontradas em seus trabalhos, Carroll negou repetidamente no fim de sua vida que sua heroína tenha sido baseada numa criança real.

Aparentemente a amizade com a família Liddel era íntima e Carroll costumava levar as crianças a passear de barco (primeiramenteo menino, depois as três garotas). Foi num destes passeios, em 1862,  que Carroll começou o rascunho da história que se tornaria seu primeiro e maior sucesso comercial: Alice no País das Maravilhas.

Em 1871 foi publicado o segundo livro, Alice no Mundo do Espelho. O livro possui uma atmosfera mais sombria, provavelmente resultado da depressão em que o autor se encontrava após a morte de seu pai (1868).
Além da literatura, Carroll tinha também por hobby a fotografia. Rapidamente ele dominou a técnica e tornou-se um famoso fotógrafo, chegando a brincar com a ideia de tornar-se um fotógrafo profissional. Aparentemente mais de 50% das fotos realizadas por Carroll traziam como tema meninas. Seus trabalhos com crianças nuas foram presumivelmente perdidos, mas seis fotos foram encontradas recentemente, tendo sido publicadas e estão disponíveis online.
Carroll também se aventurou no campo das invenções, filosofia, jogos de lógica e trabalhos matemáticos, preferencialmente nos campos da geometria, matrizes e lógica, escrevendo quase uma dúzia de livros.
Na velhice ele continuou seu trabalho na universidade e lá permaneceu até sua morte, em 14 de janeiro de 1898. Carroll faleceu aos 65 anos, de pneumonia contraída após influenza.

Pedofilia

 

Evelyn Hatche, 8 anos

A preferência por amizades com meninas (entre 8 e 10 anos), a aparente falta de interesse em relações com mulheres, e leituras psicológicas posteriores de sua obra - especialmente fotografias de crianças nuas - são os fatores que alimentam a especulação de que Carroll tenha sido um pedófilo.
Após anos de amizade com a família Liddell, em 1963 houve uma ruptura, de certa forma abrupta, que parece ter sido causada pelo desejo de Carroll em se casar com Alice (então com 11 anos). Entretanto, nunca houve suficiente evidência para esta teoria e diversas páginas de seus diários, que fazem referência a este período, foram arrancadas provavelmente por familiares, na tentativa de preservar a reputação da família.

Praticamente todos os biógrafos de Carroll em anos recentes, incluindo Morton N. Cohen, Michael Bakewell and Donald Thomas, chegaram à conclusão de que Carroll era um pedófilo, mesmo que celibato. A evidência para esta conclusão, mesmo que circunstancial, é forte.

Carroll era um solteirão, que despendia a maior parte de seu tempo livre com meninas. Sua fotografia preferida era uma foto de Alice semi-nua, vestida como uma mendiga. Até mesmo o autor Vladimir Nabokov (autor de Lolita) chamava seu personagem Humbert Humbert (o homem que se apaixona pela heroína de 11 anos) de Lewis Carroll, conforme admitiu em uma entrevista à Vogue em 1966.

Alice Liddell

Em um artigo de revisão ao New York Times em 1999, Boxer, especialista em fotografias, escreveu que o que emerge das fotografias de Carroll é bastante desconcertante. As crianças nas fotos estão em gritante contraste quando comparadas com as fotos de adultos, feitas pelo autor. As imagens infantis são ousadas, arteiras, misteriosas e sedutoras. Os modelos parecem estar tão felizes e à vontade com o setting quanto o fotógrafo. Carroll, por sua vez, conseguia obter algo de suas modelos que, por falta de uma palavra melhor, Boxer categorizou como sexual.

Carroll e Alice


Os trabalhos fotográficos de Carroll também incluem fotos de modelos adultos, mas nestes os modelos são geralmente pais com suas filhas: Em uma delas, George MacDonald, um amigo de Carroll está sentado com um livro enquanto sua filha se curva sobre ele. O braço do pai está em volta da cintura da menina, mexendo no seu cinto, como uma criança o faria. A mão da menina está no ombro de seu pai, como se ela fosse um adulto.


O trabalho fotográfico de Carroll é o que tem alimentado com mais força as declarações de que o autor era um pedófilo. Tal comportamento de proximidade com crianças também estimulou e foi o que deu início a seus trabalhos literários, conforme descrito acima. Carroll costumava levar as crianças Liddell para longos passeios de barco e aparentemente as entretinha contando histórias. A pedidos da pequena Alice, Carroll passou a escrever as histórias e assim surgiu seu primeiro livro.

O outro lado

Da mesma forma que existem defensores de que o autor era um pedófilo, diversos estudiosos e biógrafos acreditam que o autor tenha sido injustiçado. Liderados por Hugues Lebailly e Karoline Leach, estes pesquisadores sugerem que as fotografias de crianças nuas devem ser vistas à luz do "Culto da Criança Vitoriana", no qual a nudez infantil era percebida como uma expressão de inocência. Aparentemente, fotos de crianças nuas eram moda nos tempos do autor e a maioria dos fotógrafos famosos da época as tinham em seus portfólios. Muitos autores também dão outra interpretação às paginas arrancadas dos diários de Carroll, sugerindo que o autor teria tido um caso com a mãe de Alice e não com as filhas, justificando a retirada de tal informação pela família do mesmo.

Uso de drogas

Alegações de que Carroll usava o fungo ergot, do qual LSD foi eventualmente derivado também são populares. O ergot causa experiências psicoativas quando utilizado em grandes quantidades e era prescrito como tratamento para diversas condições no século 19. Enquanto que diversos artistas e poetas vitorianos obtiveram inspiração em drogas alucinógenas (como o Absinto) no século 19, não existe evidência de que Carroll realmente utilizou estas drogas.
Carroll, entretanto, era um utilizador pesado da cannabis (maconha). Na época a droga era legal e Carroll costumava comprar hashish (haxixe) constantemente.

Enxaqueca, macropsias e micropsias

Um artigo de 1999 do The Lancet, sugere que pelo menos uma parte das aventuras de Alice tenha sido baseada nas percepções de Carrol sobre suas auras enxaquecosas. Aura é um primeiro estágio da enxaqueca ou de crises convulsivas, no qual a pessoa pode experienciar alucinações (visuais, olfativas, auditivas, etc) e outras alterações perceptivas. Carroll notou as alucinações enxaquecosas pela primeira vez em uma página de seu diário de 1885, no qual escreveu que "havia experimentado, pela segunda vez, aquela estranha afecção óptica de ver fortificações que se movem, seguida de dor de cabeça". Devido ao fato de este fenômeno ter sido descrito apenas uma vez antes de Alice no País das Maravilhas ter sido publicado, muitos autores descartam esta teoria.
Os autores do artigo, entrentato, acreditam ter achado evidências que pode alterar esta opinião:

Os autores descrevem um rascunho desenhado por Carroll entre 1855 e 1862, no qual a figura é um elfo, desenhado meticulosamente excepto pelo fato de estar sem todo o lado direito do rosto, partes do ombro direito, sem punho e mão direitos. Esta estranha omissão, segundo os autores, parece sugerir um "round border defect (defeito de limites arredondados)... semelhante a um escotoma negativo". Escotomas negativos são fenômenos nos quais o paciente não vê partes de um objeto que seriam captadas por certas partes da retina, afetada pela enxaqueca.

A segunda sugestão para a teoria envolve uma entrada no diário de Carroll em 1856, no qual ele escreveu (a tradução é minha): "Consultei-me com o Senhor Bowman, o oculista, sobre meu olho direito: ele não parece pensar que algo possa ser feito para remediá-lo, mas recomenda-me que leia por longos períodos." Os autores especulam que o autor tenha procurado o oculista para tratamento do escotoma negativo que poderia ter produzido o defeito em seu desenho. Os autores concluem que a recorrência de alucinações cada vez mais familiares com o tempo poderiam "explicas as similaridades de outra forma inexplicáveis entre as experiências descritas nos dois livros "Alice".

A Síndrome de Alice no País das Maravilhas (SAPM)

A SAPM (nomeada em homenagem a Lewis Carroll), também conhecida como Síndrome de Todd, é uma condição de desorientação neurológica que afeta a percepção. Os pacientes geralmente apresentam macropsia (alucinações nas quais os objetos tornam-se gigantes), micropsia (objetos tornam-se pequenos), e outras alterações de tamanho e ou distorção das modalides sensoriais. A síndrome é geralmente associada à enxaquecas, tumores e ao uso de drogas psicoativas.
O autor não sofria desta síndrome (ao contrário do que muitos pensam), mas foi homenageado na sua denominação, visto que os sintomas são bastante similares às aventuras de Alice nas suas obras.

Para concluir, devo lembrar aos leitores que qualquer artigo de diagnóstico histórico é sempre cheio de obstáculos e perigos, visto que os sintomas não são descritos por um profissional de saúde e, mesmo que fossem, os critérios diagnósticos são fluidos e mudam de tempos em tempos. Para se garantir maior fidelidade deve-se sempre tentar utilizar fontes primárias como diários e cartas da pessoa afetada e alvo da descrição. O que se chamava enxaqueca no século 19 pode não ser entendido como tal no presente momento. Da mesma forma, os critérios diagnósticos em psiquiatria mudam com a sociedade e cultura e dificilmente pode-se impor um diagnóstico de pedofilia como o entendemos hoje aos filósofos gregos, por exemplo, visto que a iniciação de meninos por adultos era típica daquela cultura. Embora existam evidências de um interesse peculiar de Lewis Carroll por crianças, seja ele de cunho sexual ou não, todos os fatores descritos acima fizeram parte da vida e obra do autor e desta forma mereceram ser analisados individulamente neste post.

Referências:

ResearchBlogging.org

Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). (2000). Normas para publicação na Revista Casos Clínicos em Psiquiatria. Casos Clin Psiquiatria 2000; 2(2):102-102

Biblio.com. Lewis Carroll Biography & Notes.

Boxer S. Photography review; Girls Loved Him, Pedophile or Not. The New York Times, April 2, 1999.

Collingwood, Stuart Dodgson. The Life and Letters of Lewis Carroll
 
Evans RW, & Rolak LA (2004). The Alice in Wonderland Syndrome. Headache, 44 (6), 624-5 PMID: 15186310
 
Podoll K, & Robinson D (1999). Lewis Carroll's migraine experiences. Lancet, 353 (9161) PMID: 10218566

Reed B. Legend of Lewis Carroll has dark side. Gazette, The (Colorado Springs), Oct 26, 2006

Wikipedia. Lewis Carrol.

Fotos:
http://www.brokenstars.org/notes/wp-content/uploads/2009/12/lewis-carroll-03.jpg
http://sites.google.com/site/photographyoflewiscarroll/carroll-evelyn.hatch.age.8.jpg
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/05/Alice_Liddell_2.jpg
http://2.bp.blogspot.com/_Xvxt_UbB4ZY/STq6Es7TmbI/AAAAAAAAAAM/k-0Iu-OJmQk/s400/carroll%2520and%2520alice%2520kissing.jpg
http://www.jamesleland.com/wp-content/gallery/image_journal/george_macdonald.jpg
http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(05)74368-3/fulltext
http://www.broadwayworld.com/columnpic/936-009~Alice-in-Wonderland-Posters.jpg

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12 Comentários:

Anonymous Daniel disse...

Muito bom, Vanessa. Curiosamente, dei uma aula sobre os Aspectos médico-legais da pedofilia no dia 27/3, lá em Belo Horizonte (MG) e abri a aula com fotos feitas pelo Carrol (aliás, diz-se que esse pseudônimo vinha também do nome da Alice, sonoramente parecido com L.C.)

29 de março de 2010 às 16:02  
Blogger Ercy Soar disse...

Muito bom, mesmo! Aliás, parabéns por seu blog! Acho que vc vai apreciar a patografia de Van Gogh feita pela professora Elza Yacubian, em que levanta várias hipóteses não só para a psicopatologia como também para a pintura do artista.

30 de março de 2010 às 21:55  
Blogger Vanessa disse...

Obrigada pela participacao e pelos comentarios. Vou procurar o artigo sobre Van Gogh (sera por acaso o da revista Casos Clinicos em Psiquiatria?)

31 de março de 2010 às 05:12  
Blogger Ercy Soar disse...

É um livro: “A doença e a arte de Vincent van Gogh” (Casa Leitura Médica, 2008)

31 de março de 2010 às 21:35  
Blogger Vanessa disse...

Vou pedir para meus familiares comprarem... comprar livro pela internet no Brasil e mandar entregar aqui sai muito caro. Quase 70% de imposto de alfandega em cima do valor do livro (sem contar as despesas de envio). Sugestao anotada!

1 de abril de 2010 às 04:36  
Blogger Pedro. disse...

Olá, Vanessa!

Gostei da imparcialidade com que você tratou do tema, observando as divergências de opinião. Porém, gostaria de lembrar que, como diria Deleuze, um texto, após sua publicação, se abre pra uma rede de significações infinita, em que aquele que lê e dialoga com o texto é quem vai "dar" seu significado - que não é nem fixo e nem eterno. Portanto, há inúmeras formas de se ler as obras de Alice.

Porém, há certas características históricas na época da escrita de Alice que não devem ser negadas, já que fazem parte do contexto sócio-histórico que o levaram à sua produção: os costumes Vitorianos e a ideia da criança como "um adulto em miniatura" (Ariès fez um estudo clássico sobre esse tema), em que prevalece a ideia da inocência. É esse o contexto que perpassa a história de Alice: a existência de uma resistência à rainha do País das Maravilhas e uma criança que horas está grande demais pra certas coisas, horas pequenas demais pra outras coisas. O que hoje é classificado como período da moratória ou crise da adolescência.

Quanto a ele ser ou não pedófilo, aconselharia você ler o The Social Construction of What? do Ian Hacking, em que numa parte ele vai argumentar como é errôneo classificar Lewis Carroll como pedófilo, uma vez que a pedofília não existia como conceito ou ideia naquela época. Ao menos não com esse nome, ou com o sentido de ser um adulto que tem interesses eróticos/sexuais em crianças. Porém, afirmando que existiam sim adultos que se interessavam por crianças sexualmente, mas não sob essa denominação. A denominação comum - e que englobava infinitos atos - era a crueldade contra a criança. E sim, diversos estudos sobre a pedofilia apontam que naquela época existia o culto à beleza e inocência da criança, ainda que isso não significasse um interesse erótico/sexual nelas. Ian Hacking estende este mesmo argumento para diferentes "empreitadas" de classificar alguém do passado com base em conceitos e definições que não existiam em sua época. Pois, como diria Bakhtin, são os conceitos e ideias que circulam numa cultura em determinado momento histórico que moldam e nomeiam o comportamento das pessoas.

Eu sei que esses são aspectos que costumam ser negligenciados na psiquiatria/patografia, então, como psicólogo que concorda com uma posição sócio-histórica do conhecimento, não posso deixar de provocar essa tensão quando dialogo com seu texto.

12 de abril de 2010 às 09:15  
Blogger Vanessa disse...

Caro Pedro Figueiredo

Gostei muito do seu comentario e concordo que devemos ter cuidado em rotular figuras históricas com os critérios diagnósticos que temos hoje em dia. Por isso mesmo na conclusão deixei o assunto meio no ar.
Lembro-me que, quando criança, um tio deu-me de presente a enciclopédia Nosso Século, da editora Abril. Esta enciclopédia traçava um quadro social do Brasil de 1900 a 1930. Um fascículo em especial (não me lembro o número e o mesmo está no Brasil) trazia uma matéria sobre a infância de 1900 a 1910: as crianças eram vestidas como pequenos adultos quando em sociedade (porque em casa elas não podiam ser vistas ou ouvidas, fazendo suas refeições em separado) e não existia adolescência. As meninas ficavam noivas antes da menarca, em noivados arranjados pela família (com homens na casa dos 26 anos, pelo menos, muitas vezes na meia idade) e casavam-se assim que ficavam menstruadas (entre os 12-15 anos). Hoje este costume seria considerado pedofilia (heterossexual) e obviamente era socialmente aceito na época.
Da mesma forma, se voltarmos à Grécia Antiga, a iniciação sexual de meninos pré-puberes por seus tutores era rotina e socialmente aceito e as mulheres eram cidadãs de segunda classe. No mundo atual temos as noivas crianças no mundo árabe e nas Ilhas Trobiand (se não me engano) existe um costume bastante bárbaro aos olhos ocidentais: meninos pré-puberes praticam sexo oral em homens da tribo pois se acredita que a fertilidade masculina (ou o esperma) só é transmitido à nova geração desta forma.
Longe de querer fazer uma defesa da pedofilia como "socialmente aceitável" e desta forma justificável (o que não é em nossa cultura) é interessante observar o que os psiquiatras transculturais criticam diversas vezes: não se pode utilizar os critérios ocidentais de doença mental de forma completamente uniforme como a American Psychiatry Association muitas vezes propõe.
O julgamento criterioso do clínico no campo de trabalho sempre deve prevalecer quando se lida com casos históricos e outras culturas.

12 de abril de 2010 às 12:46  
Blogger Vanessa disse...

Só para corrigir meu erro. A ingestão de semen como ritual de passagem para meninos pré-puberes não ocorre nas Ilhas Trobiand, como escrevi, mas na tribo Sambia, em Papua Nova Guine.

12 de abril de 2010 às 12:52  
Blogger Pedro. disse...

Pois é, Vanessa! A sua lição de casa é bem feita rs. Infelizmente não parece ser a rotina considerar cultura de um povo/região na prática (pois na teoria costuma ser ao menos mencionado) de algumas correntes psi, apesar de, acredito eu, ser mandatório.

Fico muito feliz de saber que há profissionais como você exercendo a profissão com uma visão mais abrangente!

16 de abril de 2010 às 11:34  
Anonymous Patrícia Lima disse...

Olá Vanessa,

Muito feliz fiquei eu também ao ler um post de psiquiatria tão atento ao contexto sócio-histórico do sujeito em análise; tão rigorosamente cuidadoso e criterioso em suas colocações. Torço muitíssimo para que, cada vez mais, artigos com esse nível venham a inspirar outros profissionais da Medicina.

Por certo que a cultura nomeia e define o comportamento das pessoas, delimitando a fronteira entre o que é são e o que é patológico. E é sempre bom ressaltar que, além da interpretação dos atos, como aquelas realizadas com fins diagnósticos, a cultura determina a própria vivência dos indivíduos. Assim, o que em nossa cultura provoca transtornos, como a pedofilia, em contexto outro, como na Grécia Antiga, por serem diferentes as representações, serão outros também os sentimentos e emoções envolvidos. A vivência que possa ter tido qualquer pré-púbere desse contexto não pode ser comparada à vivência de uma criança que, membro da nossa cultura e formada no nosso complexo de representações, seja iniciada sexualmente por um adulto. O que, numa cultura, é gerador de conflitos e traumas, pode não o ser em outra.

Para além da discussão da área, no momento, gostaria apenas de chamar a atenção para um detalhe específico sobre essas fotos atribuídas a Carroll.

É fato notório que Lewis Carroll fotografou meninas em poses consideradas sensuais (ao menos para nossa época). Particularmente, desconheço qualquer foto de menina nua, mas duas observações posso fazer sobre as imagens do link que você disponibilizou, em seu post, como sendo portador de imagens de fotos de Carroll perdidas e resgatadas:

As imagens de meninas nuas não são fotografias, são pinturas, ou mesmo montagens, pelo que, a princípio, se deve desconfiar delas como uma legítima produção fotográfica de Lewis Carroll.

A foto de Alice abraçada a Carroll, na qual ela parece beijá-lo na boca (foto essa, inclusive, reproduzida em seu post) é uma montagem. A quem possa interessar, a títudo de curiosidade que seja, a foto original pode ser visualizada no endereço:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5b/Liddell,_Edith,_Lorina_&_Alice,_%27Open_your_mouth...%27_%28Lewis_Carroll,_07.1860%29.jpg

(A foto de Alice vestida como mendiga é mesmo de Carroll e consta no livro "Cartas às suas amiguinhas", compilação de cartas do autor às suas amigas meninas, publicado pela Ed. 7 Letras).

Devido a aura polêmica que envolve o autor, no que diz respeito à sua relação com crianças, muitos são os artigos e imagens falsas atribuídas a Carroll. Links na internet são sempre fonte perigosa.

Deixo aqui, neste comentário, o registro de outro ponto importante a ser observado em artigos de patografias: a fidedignidade das fontes de tudo aquilo que se atribui ao sujeito analisado.

Um abraço e parabéns pelo artigo!

Patrícia Lima

2 de maio de 2010 às 03:17  
Anonymous Marie disse...

Quando tinha uns 8 anos, comprei o livro alice no país das maravilhas,na bienal no RJ,comprei pela capa,sem ver o conteúdo,no final do livro tinha uma fotos tããããão nojentas,que eu o joguei fora.
Se eu com apenas 8 anos,consegui perceber que o cara era um pedófilo escroto,não sei por que tanta gente defende o cara,as pessoas preferem se enganar,não ver o óbvio,etc.

20 de novembro de 2011 às 17:15  
Blogger katiro disse...

Este filme de tim burton, me fez pensar que/como carrol se sentia: segundo a sua biografia, ele se parece com diversos personagens... a rainha vermelha é uma mãe opressora e doente, que "consome" o pai..., o chapeleiro louco e a alice... são o próprio carrol... com certeza ele tinha problemas mentais... talvez porcausa do abuso sexual que sofrera na época de colégio... quem sabe????

17 de novembro de 2012 às 21:19  

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