quarta-feira, 17 de março de 2010

Sadismo médico: nurture vs. nature

Research Blogging Awards 2010 Finalist
Dias atrás li o post "O abandono que gera dependência" de Thiago Moraes, estudante de medicina e autor do blog Sanidade Insana. Nele, Thiago relata seu espanto diante de uma situação muito conhecida dos médicos e pouco debatida na população: os maus-tratos infringidos por médicos e estudantes de forma consciente à população com transtornos conversivos/dissociativos.

O tema abordado por Thiago, estudante que está a testemunhar os abusos cometidos merece ser bem dissecado e debatido para trazer à luz esta questão.

É de certa forma parte da formação médica aprender a objetificar os pacientes, para que a prática se torne menos intoxicante ao médico, que tem que respirar doenças e sofrimento no seu dia a dia. Muitos poucos estudantes entendem esta questão e buscam o curso de Medicina por conta de glórias (passadas) associadas à profissão. Há inúmeras gratificações psicológicas inerentes à profissão médica: A medicina e uma área fascinante, de capital importância para a sociedade e, como tal, uma carreira desejada e idealizada pelos jovens. O grau de idealização pode gerar altas expectativas que, não correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações significativas, com repercussões importantes na saúde dos estudantes. Além disso há o caráter altamente ansiogênico do exercício profissional, no qual tratar do adoecer do outro é estar em contato íntimo com este. Algumas características inerentes à tarefa médica definem, isoladamente ou em seu conjunto, um ambiente profissional cujo colorido básico é formado pelos intensos estímulos emocionais que acompanham o adoecer (Nogueira-Martins, 1991): O contato íntimo e frequente com a dor e o sofrimento; lidar com pacientes difíceis: queixosos, rebeldes e não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, auto-destrutivos, cronicamente deprimidos.

Não é de se estranhar a necessidade, portanto, de objetificar o doente, afastá-lo de nossos sentimentos para que possamos desempenhar a atividade necessária. Exemplos particularmente vívidos desta objetificação podem ser encontrados em qualquer Centro Cirúrgico hospitalar, no qual vemos cirurgiões a desempenhar sua atividade (como a remoção de um estômago, por exemplo) enquanto contam piadas, discutem o menu do dia do restaurante do hospital ou contam de trivialidades.
O que quero que o leitor entenda até aqui é a real necessidade deste afastamento, de forma a impedir um super-envolvimento do profissional médico com o quadro do paciente, que pode afastá-lo da objetividade necessária para propor, por exemplo, um procedimento diagnóstico particularmente doloroso ou prevenir psicologicamente o profissional de chegar a um diagnóstico ruim, mas verdadeiro (por exemplo, câncer terminal).

Há uma grande diferença entre este afastamento dito "natural" e desejado do médico do sadismo descrito por Thiago em seu post, que também testemunhei quando aluna. E o pior, o alvo deste sadismo é uma população por si só vulnerável (pacientes psiquiátricos) que tem a dor causada pelo médico como sua salvação:

A história clássica do sadismo é a seguinte:

São quatro horas da manhã e os médicos de plantão estão cansados e com fome. Geralmente a esta hora há poucas opções de lanche no hospital. Chega uma nova ficha na sala de plantonistas, trazida pelo porteiro/enfermeiro/profissional de triagem. Diversas vezes ouvi o comentário "se o fulano não estiver numa maca e em estado grave, vou ficar zangado", já a estabelecer o humor em que a consulta se desempenhará.
O fulano em questão não está numa maca: Quando o médico senta-se para ouvir sua queixa, o paciente (homem ou mulher, geralmente na casa dos 30 a 40 anos) queixa-se de uma dor nas costas/abdome/pernas.... Quando questiona sobre quando a dor se iniciou, o médico (que espera uma resposta rápida que lhe diga que a dor é intensa e súbita, tendo iniciado às 3 da manhã) ouve espantado que a dor iniciou há 10 anos, não sendo tão intensa, vai e volta e piora à noite. O paciente em questão procura o pronto-socorro porque naquela noite não conseguiu dormir pela dor, que embora não seja intensa, é persistente.
Aqui o médico perde a paciência. Muitas vezes a consulta torna-se um bocado agressiva, com respostas ríspidas por conta do profissional. A terapêutica administrada a este paciente é uma referência para marcar uma consulta com ortopedista/clínico geral, etc.. e, para se ter certeza de que este paciente nunca mais cometa o pecado de acordar o plantonista com uma queixa tão boba, é lhe administrada uma injeção de dipirona ou água destilada intra-muscular (o primeiro é um analgésico simples), cuja única função é causar o máximo de dor nesta forma de administração.

Um leitor mais distraído pode pensar que o médico estava certo na impaciência em tratar o doente em questão (a parte do fato de ter administrado um medicamento/placebo apenas para causar dor). Afinal milhões são gastos todos os anos em consultas desnecessárias de pronto-socorro que poderiam facilmente ser atendidas em programa de saúde da família, centros de tratamento ou ambulatórios. Além disso, longe de o exemplo acima ser raro, ele ocorre duas, três ou mas vezes por plantão, lentificando a fila de espera de quem realmente precisa de tratamento de urgência.

Sim, tudo isso é verdade. Mas também é verdade que longe de ser intencional, o paciente em questão apresenta sofrimento genuíno e busca auxílio àquela hora por ser compelido pela sua psicopatia. Aqui estamos falando de transtornos conversivos/dissociativos.

A lista de transtornos conversivos/dissociativos é grande e não vou detalhá-la neste post, podendo ser conferida numa rápida busca pelo google. Estes transtornos, conhecidos antigamente como histeria, tendem a apresentar-se como dor ou sintoma físico, daí a procura pelo médico. Na época de Freud, as histéricas clássicas eram aquelas que quando confrontadas com situações de estresse emocional, caiam ao chão desmaiadas e eram abanadas com leques. Este comportamento naquela época era aceitável. Entretanto a sociedade mudou e o comportamento histérico de desmaios passou a ser visto com maus olhos e, como tantos outros sintomas, o comportamento evoluiu para o que hoje se aceita: dor, sofrimento, pânico, etc...

Os pacientes que chegam ao pronto-socorro pela madrugada, longe de serem vândalos do sono dos médicos, apresentam sofrimento psíquico genuíno (mesmo que inconsciente) que quando intenso, passa a manifestar-se pela dor. A escolha da hora de buscar auxílio médico também não é randômica: estes pacientes apresentam um vasto leque de sintomas depressivos (com insônia sendo um dos proeminentes), o que faz com que eles não durmam ou acordem de madrugada, angustiados, desamparados e procurem o hospital.

Mesmo o mal causado pelo médico sádico na verdade é entendido como um bem, já que na maioria das vezes, mesmo com uma simples injeção de água destilada, a dor passa: estes pacientes são por natureza extremamente sugestionáveis e a injeção dolorida para punir a carne, de certa forma alivia o espírito.

Isto entretanto não justifica o comportamento dos médicos e estudantes (que aprendem na barra do jaleco/bata as más-práticas) cuja única intenção é causar DOR.

É horrível pensar que um profissional que teoricamente deveria entender dor, miséria e sofrimento, disponha-se conscientemente a provocar mais dor em seus pacientes, contrário a tudo que é aprendido no currículo e ao juramento solene prestado no dia da formatura.

Aqui vai um pequeno exerto do juramento de Hipócrates:

(...) Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. (...) Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.

E de onde vem este comportamento sádico?

O próprio exercício da profissão médica parece ser "um veneno psicológico" para seus profissionais: Uma alta incidência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais tem sido apontados na literatura. Muitas das características psicodinâmicas que podem conduzir as pessoas para a carreira médica também as predispõem a desordens emocionais. Algumas características incluem compulsividade, rigidez, controle sobre as emoções, retardo de gratificações e formação de fantasias irrealistas sobre o futuro. É aqui que falo de NATURE (natureza). Um estudo de doutorado/doutoramento de uma colega psiquiatra observou que os traços obsessivos de personalidade são muito mais comuns nos estudantes de medicina do que na população geral. A tese em questão não entra no mérito de causa e efeito: pode ser que o curso de medicina, com seu obsessivo limpar, suturar, observar se não se esqueceu nada na cavidade abdominal do paciente que foi operado, reforce características não tão patológicas anteriores, ou crie o surgimento de traços obsessivos. Pode ser (na minha opinião mais provável) que as demandas por longas horas de estudo e notas suficientemente altas para entrar no curso de medicina sejam apenas satisfeitas por personalidades suficientemente obsessivas e o processo seletivo na verdade separe indivíduos com estes traços para o exercício da profissão. E como se sabe, obsessão tem a ver com CONTROLE. Os pacientes que apresentam-se desta forma às quatro da manhã fogem do padrão estabelecido "normal" para aquele contexto, ambiente e horário. São fatores que fogem ao controle do médico, que age com agressividade para exprimir sua frustração.

Por NURTURE, entende-se educação, nutrição de comportamentos adequados ou inadequados. Diversos estudos exploram o currículo médico, quais disciplinas são importantes e como educar melhor os alunos. Entretanto todos estes observam o currículo formal. Um estudo recente,  de Wear e Skillicorn, publicado no Journal of the Association of American Medical Colleges observou um outro tipo de educação: O currículo informal e o currículo escondido.

O estudo em questão focou-se na área da psiquiatria (internato e residência) mas acredito que seus achados ou hipóteses podem ser generalizados para toda parte clínica do curso de medicina.

O currículo informal é administrado junto ou após a educação teórica, mas ainda pouco é conhecido sobre o assunto. Durante a parte clínica do curso de medicina (terceiro ou quarto anos em diante), é que os alunos são mais confrontados com o currículo informal. O estudo analisou as percepções dos alunos sobre o currículo formal (aulas estruturadas e conhecimento teórico) e o currículo informal. O currículo informal foi definido como o processo pelo qual o conhecimento e habilidades do aluno são situadas em um contexto de trabalho diário (como plantões, corrida de leito, etc..). O currículo escondido foi definido como mensagens subliminares e ideologias passadas dentro dos currículos formal e informal. Por modelos, entende-se residentes e médicos que estiveram em contato com os estudantes durante o experimento.

Em geral, os estudantes não tiveram dificuldades em diferenciar modelos negativos de positivos, mas o currículo informal foi altamente valorizado como forma de aprendizagem. Além disso, eles identificaram que os elementos dos currículos informal e escondido foram expressados primariamente como valores demonstrados pelos modelos enquanto atendiam seus pacientes (como tempo despendido e conselhos dados "da experiência" ao invés de seguir os livros).

Dr. Cox reprime J.D. (aluno) na sitcom americana Scrubs, que traz bons exemplos do que é educação médica informal e escondida.

O estudo mostra a importância de bons modelos, bons profissionais médicos na formação do estudante de medicina/psiquiatria. Membros de uma faculdade de medicina deveriam ter ciência do quanto influenciam seus alunos no seu contato com os pacientes nos corredores do hospital, nas salas de atendimento, etc. "Monkey sees, monkey does", como dizem os ingleses.

Médicos que engajam constantemente em comportamentos rudes e sádicos não deveriam trabalhar em contato com novos profissionais, para prevenir uma "contaminação" da nova geração de médicos pelos antigos valores. Em um mundo ideal, professores médicos e plantonistas em contato direto com alunos, verdes ainda na personalidade e modelo médico seriam completamente dedicados a este ensino.

Sim, tudo isso seria ideal....
A realidade portanto, é outra. E é hora de o paciente reconhecer seus direitos e reclamar se foi mau atendido ou agredido da forma como exemplifiquei. Todo hospital do SUS possui um livro de reclamações. Em Portugal, é obrigatório apresentar-se o livro amarelo quando solicitado.
Só com a reclamação por escrito dos diretamente afetados e com reprimendas aos médicos envolvidos pode-se tentar diminuir a epidemia de comportamentos sádicos nos pronto-socorros do país e prevenir que a nova geração de médicos aprenda as más-práticas e o desrespeito ao próximo, tão comuns nos pronto-socorros do SUS.

Referências:

ResearchBlogging.org
Andrade, MPM. As defesas psíquicas dos estudantes de medicina / Defense mechanism of medical students. Säo Paulo; s.n; 2000. 97 p. tab.

Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro\São Paulo: Livraria Atheneu, 1988.

Botega, NJ e Nogueira-Martins, LA. Hipócrates doente: os dramas da Psicologia Médica, 1997.

Cassorla, RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Revista ABP-APAL, 1994.

Nogueira-Martins, LA. Saúde mental dos profissionais de saúde. In BOTEGA, M. J. (org.). Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e Emergência. Porto Alegre, Artmed Ed., 2002.

Wear, D., & Skillicorn, J. (2009). Hidden in Plain Sight: The Formal, Informal, and Hidden Curricula of a Psychiatry Clerkship Academic Medicine, 84 (4), 451-458 DOI: 10.1097/ACM.0b013e31819a80b7

Zimerman, DE. A formação psicológica do médico. In. MELLO FILHO, J. Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

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3 Comentários:

Blogger Camila Sousa de Almeida disse...

O post de Thiago está ótimo e o seu complementou muito bem. O problema com a orientação dada ao final, de "reclamar se foi mau atendido ou agredido", é que a maioria da população mal tratada é aquela ignorante o suficiente para não saber que pode fazer algo, ou como fazer...

17 de março de 2010 às 16:26  
Blogger Vanessa disse...

A Camila vai direto ao ponto. Os pacientes em questão não são apenas vulneráveis por serem pacientes psiquiátricos, mas também por serem em geral ignorantes, pobres e sem consciência de seus direitos. Eu nunca vi um colega a praticar tais atos em hospitais particulares (onde são pagos por procedimentos e provavelmente apreciam a presença do "pití" neste ambiente).

18 de março de 2010 às 02:21  
Anonymous Anônimo disse...

otima leitura, porem, feita por alguem que nao trabalha em um PS. TODO DOMINGO tem dezenas de bebados, com pity, que nao deveriam estar em um hospital que atende muito bem EMERGENCIAS! Pity merece AD e tchau! Procure um psiquiatra depois

13 de março de 2012 às 19:05  

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