quarta-feira, 7 de abril de 2010

Cuidado com o curandeirismo virtual

Um ditado inglês diz que ser adulto é não se chocar com mais nada. Entretanto a malícia é tamanha que não consigo conter meu espanto.

Eu criei este blog ano passado para discutir temas em saúde mental na minha língua materna. Um dos objetivos era utilizar da internet (este meio que socializa e uniformiza o conhecimento) para explorar temas que nunca havia discutido em minha residência em psiquiatria, como sexologia (que vi em Portugal) e neuropsiquiatria de ponta (na Inglaterra). Outro era criar mais um meio no qual as pessoas que tivessem dúvidas sobre a psiquiatria, uma área ainda envolta em preconceito e medo, encontrassem informação detalhada numa linguagem leiga. E por fim, sou mesmo muito opinionada e ter um veículo no qual possa escrever livremente o que penso de terapias alternativas e outros assuntos polêmicos é bastante catártico.

Conforme o blog foi ganhando momento, conheci muitos outros blogueiros e passei a receber diversos emails. Alguns de ex-pacientes e estudantes, que me encontraram e outros de desconhecidos, com dúvidas sobre um ou outro assunto. Conforme está sugerido no cabeçalho do blog, assim que possível disponho-me a responder as dúvidas ou a apontar o caminho.

Recentemente algumas pessoas passaram a me escrever com dúvidas sobre seus médicos e tratamentos, muitas vezes em longos e detalhados emails. Como disse antes, assim que possível respondo a todos, mas estabeleci algumas regras básicas nestas situações, norteadas por princípios éticos:
  • Nunca se faz diagnóstico pela internet. Diagnóstico pressupõe avaliação, o que não ocorre no meio virtual. Muitos emails são extremamente detalhados e trazem histórias de vida interessantíssimas. Mesmo assim, uma avaliação psiquiátrica consiste não só no conteúdo do que é dito, mas na forma como este conteúdo é entregue. Olhares, movimentos corporais, pausas, tiques e outros são tão parte do exame psiquiátrico quanto a queixa do paciente. Enquanto que no cardiologista a queixa principal (dor), e a história da queixa (quando começou, onde, etc) são suficientes para se formular uma hipótese diagnóstica, o mesmo não vale para a psiquiatria. A observação do paciente é fundamental.
  • Nunca se prescreve para alguém que nunca se avaliou. Este é um princípio básico do bom médico. Muitas vezes vi colegas prescreverem medicamentos para a mãe de alguém (que nunca foi vista por eles). Segundo a lei, colocar algo na xícara de café ou na comida sem que a pessoa saiba é prática de envenenamento e o médico pode ser considerado cúmplice se prescreveu o medicamento para alguém que não sabia que estava a usá-lo. Da mesma forma, prescrever ou discutir uma prescrição pela internet ("seu médico está errado, você deveria utilizar o medicamento X em vez do Y") é extremamente antiético.
  • Mesmo a discussão de uma hipótese diagnóstica é complicada: O leitor pode notar que diversas vezes fiz o uso da expressão hipótese diagnóstica. Isso é decorrente do fato de que em medicina (como em todas as áreas científicas) o que se faz são hipóteses que depois são ou não colocadas a teste. Quando um clínico geral diz "parece ser pneumonia" (hipótese) ele manda o paciente para o Raio-X ou ausculta o pulmão. Estes são testes para confirmar ou negar a hipótese estabelecida. O mesmo ocorre na psiquiatria. Um diagnóstico não é um rótulo que a pessoa tem que usar colado na testa para o resto da vida. É uma hipótese que vai ser testada com o tratamento. Infelizmente ainda não existem testes diagnósticos fidedignos na área e a prova do tratamento é o que testa melhor se uma hipótese é ou não verdadeira. Quem assiste a série americana House M.D. entende melhor o que estou a dizer aqui, pois os criadores da série foram muito felizes ao demonstrar como é mesmo uma arte o ato de diagnosticar e como provar esta hipótese pode ser difícil.

House M.D.

O objetivo deste post não é impedir que o leitor me contacte se tiver dúvidas, mas esclarecer, ajudar a separar o joio do trigo:

Recentemente li um post em um blog de ciências brasileiro que retoma a discussão sobre "bicarbonato cura o câncer/cancro". Para quem não se lembra, há uns dois ou três anos atrás um ex-médico italiano (o registro dele foi cassado por falta de ética em seus estudos) alegou que tinha encontrado a "cura do câncer" utilizando o simples bicarbonato de cozinha. Diversos estudos sérios surgiram contestando o achado do médico (que dizia que o câncer era provocado por um fungo) e o tema virou assunto de spams, que vira e mexe recebemos na caixa de entrada de nossos emails.

No blog RNAm, escrito por dois doutorandos em biologia, que faz parte da comunidade Reseach Blogging, os autores escreveram um post bastante polêmico, de título "Bicarbonato de sódio FUNCIONA contra o câncer". Nele, os autores que anteriormente haviam discutido o teor dos spams sobre bicarbonato de forma ácida discutem dois artigos que encontraram que o aumento do pH pode reduzir metástases. Os artigos praticamente não tem nada a ver com o que o médico italiano proclamava. Eles discutem testes in vitro e a via de administração do bicarbonato é bastante específica.

O post foi suficiente para causar uma inundação de comentários de fé. Desde veterinários, biólogos e outros a chamarem os autores de nomes de baixo calão (uma tristeza) a pessoas bem intencionadas mas completamente perdidas que acreditam (tem fé) que o bicarbonato funciona e a ciência é que tem que provar que ele não funciona.

Eu já havia escrito num post anterior como o método científico funciona. Basicamente, quem propõe a teoria é quem deve realizar testes para prová-la (o ônus da prova cabe ao autor) e NADA é provado em ciência. NUNCA. Não existem verdades absolutas no meio científico. Verdade absoluta é uma questão de religião. Por exemplo: "Deus existe". Se você acredita em Deus, isto deve bastar para si e para sua fé. A religião exige uma crença, um salto de fé, no escuro, uma crença em Deus, sem provas. Já a ciência exige que quando se faz uma afirmação ou uma negação, que se realize provas para testar a veracidade da hipótese.

Então quando alguém diz que acredita em homeopatia, po exemplo, já saiu do campo científico e entrou no campo da fé. É um direito seu fazer isso, mas esta forma de discurso não pode ser utilizada no meio científico.

O que me chocou mesmo foi ver como existem pessoas inescrupulosas que se utilizam da dor alheia para ganhos. Nos comentários do tal post sobre bicarbonato uma pessoa que se entitula "médico europeu" destaca-se pelo tom agressivo no qual responde aos autores e por só escrever em caixa alta/caps lock.  Ao acompanhar esta pessoa virtual vê-se que ele está ali e em vários blogs de ciência para "vender" seu tratamento contra o câncer/cancro baseado em bicarbonato.

Talvez alguém mais malicioso pense que se uma pessoa se propõe a buscar tratamento da "cura do câncer" pela internet e forneça seu cartão de crédito a um "médico europeu" merece mesmo ser lesada. Só quem perdeu alguém na flor da idade para esta doença ou viu o desepero de familiares e amigos de pacientes com câncer entende o quão frágeis e vulneráveis a este tipo de "cura" estas pessoas são.

Não seja vítima de pulhas virtuais e não brinque com seu bem mais precioso, sua saúde. Aprenda a separar o joio do trigo no que tange a profissionais e mesmo blogs de ciência.
  • Desconfie de quem faz "diagnóstico" pela internet
  • Desconfie de quem cobra para responder suas perguntas ou dúvidas
  • Desconfie de quem "prescreve" pela internet
  • Desconfie de qualquer medicamento vendido pela internet. Confirme no site da ANVISA (Brasil) ou no Prontuário Terapêutico (Portugal) que o mesmo é aprovado para venda.
  • Nunca compre ervas ou terapias alternativas pela internet. Você pode dizer que sabe mesmo como estes produtos foram obtidos ou manufaturados?
  • Aprenda o método científico. Alguns médicos discordam, mas pacientes bem informados e que entendem o tratamento tem melhor prognóstico. Muitos sites explicam como se chegam a hipoteses diagnosticas e como a revisão por pares (peer review) é importante para o avanço da medicina e ciência em geral. Pergunte sempre o porque de um medicamento para sua doença e não outro. Você está no seu direito.

Para quem quiser ler os artigos citados sobre acidez/redução do pH em metástases:

ResearchBlogging.org
Robey IF, Baggett BK, Kirkpatrick ND, Roe DJ, Dosescu J, Sloane BF, Hashim AI, Morse DL, Raghunand N, Gatenby RA, & Gillies RJ (2009). Bicarbonate increases tumor pH and inhibits spontaneous metastases. Cancer research, 69 (6), 2260-8 PMID: 19276390

Silva AS, Yunes JA, Gillies RJ, & Gatenby RA (2009). The potential role of systemic buffers in reducing intratumoral extracellular pH and acid-mediated invasion. Cancer research, 69 (6), 2677-84 PMID: 19276380

Fotos:
http://images2.fanpop.com/images/photos/5800000/House-M-D-greys-md-5836179-450-600.jpg
http://www.fotosdahora.com.br/fotos/04Nossa_lingua_portuguesa//curandeiro_analfabetico.gif
http://www.cartoonstock.com/newscartoons/cartoonists/mba/lowres/mban1234l.jpg

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5 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Excelente post. A facilidade de acesso à informação é muito útil, mas está sujeita à sua utilização por pessoas mal intencionadas.
É preciso muita cautela e análise crítica para apreciar as informações obtidas.

7 de abril de 2010 às 19:31  
Blogger Vanessa disse...

Obrigada pela participacao!

8 de abril de 2010 às 04:40  
Blogger Rafael Bento da Silva Soares disse...

É o que dizem, o preço da liberdade (de acesso a informação)é a eterna vigilância.

Obrigado pela citação do RNAm. Este post do bicarbonato gerou um trabalho de análise de conteúdo dos comentários que pode lhe interessar, veja aqui: http://scienceblogs.com.br/rnam/2009/11/rnam_no_i_foro_iberoamericano.php

Gostei muito do blog, parabéns

8 de abril de 2010 às 14:55  
Blogger Thiago Moraes disse...

excelente!

seu blog eh com certeza um dos top3 dos q frequento! leitura semanal obrigatoria! rs

...aah por sinal, obrigado pela citação ao meu blog no post sobre sadismo médico! comentei nele mas na hr de postar minha net caiu! ai a preguiça de voltar foi maior! kkkkkk

um grande abraço!

11 de abril de 2010 às 22:53  
Blogger Vanessa disse...

Oi Thiago

Pois 'e, tbm sei o que 'e preguica para ter que (re) escrever um comentario... heheheh
Obrigada pela audiencia!

12 de abril de 2010 às 07:29  

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