sábado, 31 de julho de 2010

É possível mimar um bebê?

Recebi o seguinte texto de minha midwife e compartilho-o com os leitores. O texto é minha tradução de "Can You Spoil a Baby?" por Merrie-Ellen Wilcox

Você vai mimar aquele bebê se o segurar todas as vezes que ele chora! Coloque o bebê no seu berço! Você dá colo demais para o bebê! Amamentando de novo? Ele vai ficar mimado.


Quantos de nossos bem intencionados amigos, parentes e até mesmo estranhos não nos deram conselhos como estes? Em uma cultura que valoriza independência sobre quaisquer outras qualidades, mimar um bebê é tabu. Bebês mimados, dizem-nos, crescem crianças e adultos dependentes, manipulativos e geralmente pedantes.

Mas agora, após décadas de pesquisas sobre o comportamento dos bebês, pesquisadores estão a desmistificar a sabedoria popular. A evidência é incrível: Não se consegue mimar um bebê. De fato, o que é comumente entendido como mimo – pegar seu bebê rapidamente assim que ele chora, segurá-lo, e amamentá-lo a demanda, por exemplo, na verdade alimenta a independência dele ao assegurar ao bebê que o mundo é um lugar seguro, no qual ele pode confiar. Esta sensação de segurança, segundo Dr. Klaus Minde, diretor do departamento de psiquiatria do Montreal Children’s Hospital, dará à criança em desenvolvimento confiança para enfrentar o mundo com independência.

Um bebê que chora não é “mau”, “manipulativo” ou “difícil”, apenas normal. Como qualquer outro ser humano, ele necessita de alimento quando está com fome, compania quando está sozinho, estímulo quando entediado, e conforto quando com dor, tristeza ou estressado. Embora crianças mais velhas e adultos possam agir a um nível cognitivo, pensando sobre o que querem e como conseguí-lo, bebês agem em um nível mais responsivo e seu comportamento reflete necessidades físicas e emocionais imediatas. O choro é a única forma de comunicação para muitas destas necessidades. Como o Dr. Minde diz, “o choro é a único veículo que o bebê dispõe para pedir ajuda.”, “Não é realizado numa tentativa de manipular ou controlar a casa”, e ele sugeste que a única resposta adequada ao choro de um bebê é “ir a ele e descobrir o que ele precisa”.

Segundo Brenda Hann, terapeuta infantil no Infant and Toddler family Intervention Programme the West End Crèche em Toronto, um bebê cujas necessidades não são respondidas não desenvolve um instinto de confiança básica no seu ambiente e terá dificuldade em formar laços seguros às pessoas à sua volta. É provável que este bebê também sinta mais ansidedade para desenvolver mecanismos para defender-se dos sentimentos de rejeição, como busca de atenção e adesividade em fases mais tardias.

Apenas quando uma criança começa a desenvolver um entendimento claro de causa e efeito e das dinâmicas da vida familiar (mais ou menos a partir dos 9 a 12 meses de idade) que os mimos podem se tornar um problema. A partir de então, os pais devem diferenciar entre um choro que exige uma resposta imediata e choro que exige outras respostas, como tempo para que a criança acalme-se por si mesma.

Segundo Hann, é aqui que os limites tornam-se importantes para desenvolver o senso de segurança da criança, como uma resposta confiável no primeiro ano. Nos segundo e terceiro anos de vida, a criança desenvolve seus próprios controles internos e aprende a manejar sua própria angústia. Limites criados através de rotinas, regras simples e alguns “nãos” bem colocados aumentam a confiança da criança de que o mundo é um local seguro e acolhedor. Sem limites, a criança mais provavelmente tornará-se insegura e ansiosa.

E quanto aos conselhos não solicitados das avós, amigos e pessoas na fila do supermercado? Dr. Minde sugere que respondamos a estes avisos contra segurar um bebê que chora, por exemplo, simplesmente mencionando que hoje existe uma riqueza de teorias e estudos que dizem o contrário. (Diversos estudos mostram que quanto mais vezes o choro do bebê é respondido adequadamente pelos pais, menos ele chorará aos 18, 24 ou 36 meses.) Ou lembre à pessoa que oferece o conselho que cada bebê é único e você, pai ou mãe, sabe muito bem qual a resposta que ele precisa neste momento.

Hann, que apesar de sua especialidade na área viu-se confusa devido aos avisos de não mimar sua filha, sugere que acolha-se conselhos em geral com parcimônia. “Ouça e siga seus próprios instintos”. Ao responder à sua criança, levando-se em conta a pessoa única que ela é e o que ela precisa, você a ajudará e a si mesma a desenvolver uma forma de intercomunicação pessoal e abrangente.

Conforme você aprende a apreciar a singularidade de cada relação pai-filho, você ficará menos suscetível a oferecer conselhos não solicitados a outras mães e pais na fila do supermercado.

Foto: http://baby.more4kids.info/uploads/Image/May/baby-crying.jpg

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sábado, 17 de julho de 2010

A Cocaína: de tônico cerebral a destruidora de sociedades - Parte 2

Este post continua a história do uso e dependência de cocaína

A Era dos Medicamentos Patenteados


Numa época de conhecimentos incompletos, na qual a farmacologia ainda engatinhava e figuras de autoridade exaltavam os mais diversos psicofármacos, desconhecendo ou desacreditando os efeitos adversos, um lucrativo comércio de tónicos e soluções que continham as mais diversas drogas despontou no final do século 19. Fabricantes de medicamentos patenteados, tónicos e refrescos produziram uma pletora de produtos que continham cocaína, desde cremes e pós nasais a supositórios. Estes medicamentos alegavam curar uma lista de doenças, incluindo alcoolismo, asma, gripes, eczemas, neuralgias, dependência de morfina e doenças venéreas.

Em 1863 Angelo Mariani, um químico da Córsega, patenteou o Vin Mariani, um vinho de coca. A propaganda do produto incluía testemunhos de Thomas Edison, Robert Louis Stevenson, Jules Verne e o Papa Leão XIII. A propaganda médica afirmava que apenas aqueles de pouca força de vontade tornavam-se usuários regulares da droga. A propaganda de uma substância conhecida como Metcalf’s Wine of Coca afirmava: “Oradores, cantores e atores acham que o vinho de coca é um ótimo tônico para as cordas vocais. Atletas, corredores e jogadores de Baseball viram por experiência prática que o uso regular de coca, tanto antes quanto após qualquer prova de esforço, irá aumentar a energia de todos os movimentos e prevenir fatiga. Pessoas idosas viram que é um afrodisíaco superior a qualquer outra droga.” Entretanto, o produto que se tornou mais famoso mundialmente foi a Coca-Cola. Assim com outros produtos da época, a Coca-Cola originalmente continha cocaína e era vendida como um “tônico cerebral e intelectual” e eventualmente passou a ser vendida apenas como refresco. Por volta de 1903, o fabricante abandonou o uso de xarope de coca e, até os dias de hoje, o refrigerante utiliza apenas folhas de coca nas quais a cocaína foi retirada através do processo de acetilação (Bayer, 2000).

Os problemas começaram a tornar-se públicos – overdoses, psicoses por cocaína, graves dependências químicas – e a opinão pública começou a mudar. Fleischl, que esteve entre os primeiros a manifestar sintomas do abuso de cocaína, infelizmente não foi o último. Enquanto que mortes por overdose resultante de auto-administração eram raras, overdoses por doses administradas pelos médicos tornaram-se frequentes. O relato do caso de Annie Meyers foi influencial na mudança perante a droga: “Eu deliberadamente peguei um par de alicates e soltei um dente que tinha uma obturação de ouro. Então, extraí o dente e o esmaguei, levando o ouro à loja de penhor mais próxima (o sangue corria pela minha face e encharcava minhas roupas) onde o vendi por 80 centavos.”

No início do século 20, alimentada pelos abusos na propaganda dos medicamentos patenteados, pelos diversos relatos de efeitos adversos com a cocaína e por uma campanha de estigmatização social da droga, a opinião pública começa a mudar. De 1900 a 1920, uma série de reportagens na mídia americana associava a cocaína a crimes hediondos cometidos por negros. A cocaína (e cannabis) passou a ser estigmatizada nos EUA por sua associação a trabalhadores pobres de minorias étnicas. Eles cheiravam cocaína porque não podiam comprar seringas, o que os distinguia no uso da droga dos médicos, advogados e classes média e alta, que injetavam a droga. A cocaína passou a ser acusada de ser um “potente incentivo para que negros humildes em todo o país cometam crimes anormais”.

Todos estes fatos, no início do século passado, lançam bases para uma reforma legislativa nos EUA, que culminou com a criminalização da substância. O Harrison Narcotics Act de 1914 (melhor descrito nos posts relativos à heroína) restringiu significativamente a disponibilidade da coca e cocaína, proibindo o uso da droga em medicamentos patenteados. A combinação de propaganda adversa da substância e de legislação específica removeram a áurea de respeitabilidade da droga. Com a proibição, a droga tornou-se cara, sendo disponível apenas para uma minoria afluente. No período que segue a criminalização, até a Segunda Guerra Mundial, o número de usuários nos EUA é difícil de ser estabelecido. No início da década de 30, com a disponibilidade de anfetaminas e o alto custo da cocaína, sua popularidade tornou-se ainda mais reduzida. Até o final da década de 50, o comércio ilegal de cocaína praticamente não compensava.

No Brasil a cocaína também era legalmente comercializada na época, como parte integrante de medicamentos ou na sua forma pura. Sob influência das questões norte-americanas a sociedade brasileira passou a ver o uso de cocaína com preocupação. Seguindo as tendências mundiais, em 1921 o Decreto-Lei Federal no 4.292 de 06 de Julho de 1921 restringiu o uso de cocaína no Brasil.

Apenas no final da década de 60 e início dos anos 70 o interesse em cocaína voltou a renascer. Sociedades afluentes, que inicialmente buscavam auto-realização pessoal em pouco tempo passaram a buscas de prazer hedonísticas, alimentaram as vendas internacionais de cocaína. A droga inundou nichos do mercado norte-americano, criados por anfetaminas, heroína e maconha, produtos da cultura da droga dos anos 60. O grande número de norte-americanos que consumia maconha e alucinógenos resultou em diminuição do temor das restrições legais. A cocaína reaparece como droga da elite (estrelas do cinema e do rock), que publicitaram largamente sua nova droga “gourmet”. Esta apologia social da droga levou ao ressurgimento do consumo de cocaína nos EUA. O movimento yuppie, uma ideologia ligada ao consumismo e à rápida ascenção social, utilizou a cocaína para diminuir a fatiga e aumentar a capacidade intelectual. Colombianos de Medelín surgiram como intermediários entre esta demanda e fazendeiros peruanos e bolivianos, refinando a droga e a vendendo principalmente através de imigrantes colombianos em Miami e Nova Iorque. No final da década de 1980 e início dos anos 90, seguindo a tendência americana, o aumento do consumo de cocaína é detectado na população brasileira, quadruplicando de 1987 a 1997.

Com o aumento da repressão no final da década de 80, durante o governo de Ronald Regan e sua “Guerra às drogas”, novos mercados são desbravados com o crack. No início de 1990 a produção de cocaína ilícita era estimada em 1000 toneladas métricas, pelo menos cem vezes maior do que o pico da produção legal no Peru, no início do século passado.

Fotos:
http://www.a1b2c3.com/drugs/coc03a.jpg
http://www.thegooddrugsguide.com/files/images/c_cocacola_poster.gif

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quinta-feira, 15 de julho de 2010

As aventuras do Homem-Metadona e da Garota Buprenorfina

Uma pequena interrupção nos posts sobre história da toxicodependência para um vídeo sobre o assunto:


O vídeo com Methadone Man e Buprenorphine Girl pode ser bobinho mas a situação na Rússia é séria. O índice de usuários injetáveis de drogas é altíssimo e a partilha comum. O vilão "Thought Control" (controle de pensamento), que tenta fazer com que as pessoas não acreditem na eficácia dos tratamentos farmacológicos da dependência de heroína atua também em Portugal e no resto da Europa.
As drogas injetáveis são responsáveis por 1 em 10 casos de transmissão do HIV e se excluírmos a África da equação (alta transmissão heterossexual), o número sobe para 1 em 3 casos.

Se os tratamentos de substituição estivessem disponíveis globalmente, eles poderiam prevenir 130.000 novos casos de infecção pelo HIV por ano, diminuir a trasmissão do vírus da Hepatite C e reduzir o número de mortes por overdose em 90%.

Se o vídeo for muito bobinho para você, recomendo o gibi (cartoon) abaixo:

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quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Cocaína: de tônico cerebral a destruidora de sociedades

Nomes de rua: Branca, Branquinha, Coca, Gulosa, Neve, Snow

A cocaína é extraída da folha de uma pequena árvore nativa da América do Sul conhecida como coca (Erythroxylum coca). Folhas de coca foram encontradas em antigas câmaras funerárias no Peru, que datam de 2500 A.C. Aparentemente os Incas iniciaram o uso de coca por volta do 10o século. A coca era uma droga sagrada, sendo utilizada primariamente pelos sacerdotes e nobreza em cerimônias especiais. Com o tempo, a prática extendeu-se à população geral, e era utilizada para combater a fatiga provocada pelo ar rarefeito das regiões andinas. A coca era mascada por 45 minutos, associada a uma substância alcalina, e produzia efeitos semelhantes aos da cafeína: nesta forma de utilização (oral), a coca apresentava poucos efeitos colaterais e o efeito terapêutico era reduzido (estimulação). Como espécies selvagens da planta produzem folhas menores, que eram consideradas inferiores em sabor, o cultivo da coca ocorreu desde cedo. A planta era cuidadosamente cultivada e possuía significado religioso central nas sociedades andinas.

Diversos mitos Incas explicavam as origens da coca. Em um deles, a coca era uma linda mulher, executada por adultério, esquartejada e enterrada. De uma parte de seus restos a planta cresceu e floresceu para ser consumida apenas por homens, em sua memória. Em outro, a coca foi criada pelo deus Inti. Inti instruiu a mãe lua, Mama Quilla, a plantar coca nos vales úmidos e ordenou que apenas os descendentes dos deuses poderiam consumí-la. A droga teria sido disponibilizada para aliviar a fome e sede dos Incas, descendentes dos deuses, para que eles lidassem com as demandas terrenas.
Mama Quilla

Quando os espanhóis conquistaram os Incas, o uso da folha de coca já estava generalizado na população. Inicialmente os espanhóis, especialmente os missionários, aboliram o uso da coca por motivos religiosos: o uso de qualquer substância para ter visões era considerado bruxaria ou idolatria. Entretanto, cedo os conquistadores encontraram vantagens no uso da droga, embora eles mesmos não a utilizassem: sob Pizarro os escravos nativos trabalhavam mais e comiam menos se fossem permitidos mascar a coca. Rações fornecidas pelos conquistadores continham coca, que permitia aos escravos lidar com a miséria diária do trabalho forçado. A coca também se tornou um mercado lucrativo para os colonizadores, que possuíam plantações da droga nos Andes. Em 1569 Filipe II da Espanha declarou que a coca era essencial ao bem estar das índios dos Andes, e ao mesmo tempo urgia os missionários a acabar com o uso idólatra da planta. A igreja católica abandonou suas objeções à droga, já que a taxação sobre a substância tornou-se um rico meio de conseguir dividendos.

Nos séculos 16 e 17 o papel da coca como medicamento para diversos problemas médicos passou a ser reconhecido por médicos espanhóis, que advogavam seu uso para problemas da pele, resfriados, asma, reumatismo, laringites e dores de dentes. Embora a coca tenha sido transportada para a Europa, a substância não foi adotada pelos europeus, provavelmente devido à deterioração das amostras, assim como a aversão ao hábito de mascar as folhas. Apenas em 1750, quando o botânico Joseph de Jussieu em expedição no Peru enviou amostras que a planta passou a ser estudada.
Albert Niemann

A coca era virtualmente desconhecida na Europa até o século 19. O ingrediente ativo da coca foi identificado e isolado por Albert Niemann, na Alemanha, em 1860, ao qual deu o nome de cocaína. Na mesma época, Paolo Mantegazza, um neurologista italiano, descrevia os efeitos da cocaína em si mesmo, relatando detalhadamente os efeitos subjetivos e fisiológicos:

Algumas das imagens que tentei descrever na primeira parte do meu delírio eram cheias de poesia. Eu olhava com desdém os pobres mortais, condenados a viver neste vale de lágrimas enquanto eu, carregado nos ventos de duas folhas de coca, fui voando aos espaços de 77.438 palavras, cada uma mais esplêndida que a anterior.
Após uma hora eu já estava suficientemente calmo para escrever estas palavras com a mão firme: “Deus é injusto porque ele fez o homem incapaz de manter o efeito da coca por toda a vida. Eu preferia viver 10 anos de coca do que 1000000... (e aqui eu inseri uma linha de zeros) séculos sem coca.”
Paolo Mategazza, On the Hygienic and Medicinal Virtues of Coca.

Freud, entusiasmado por este trabalho, assim como o de Theodor Aschenbradt, um médico militar da Bavária, que em 1883 relatou o uso de cocaína para exaustão e como analgésico, auxiliando soldados doentes à retornar à sua função, iniciou em 1884 experimentos com a droga. Em um artigo entitulado “Uber Coca” (1884) ele descreveu as virtudes da droga, declarando que a cocaína poderia ser utilizada para aumentar a capacidade física durante períodos estressantes, restaurar a capacidade mental reduzida pela fatiga, aliviar a depressão, tratar desordens gástricas, asma, alcoolismo, dependência de morfina e como anestésico local. Apenas este último provou ser a única propriedade médica da droga. Freud também tinha motivações pessoais no seu trabalho com a substância: seu amigo, o pesquisador Ernst von Fleischl-Marxow sofria de dependência de morfina derivada da utilização do medicamento para tratamento de dor crônica. Freud prescreveu a cocaína para tratar a exaustão nervosa derivada de abstinência de morfina de Fleischl. Eventualmente Fleischl passou a consumir uma grama por dia e tornou-se o primeiro toxicodependente europeu de cocaína. Ele apresentou delírios paranóides e referia sensações de pequenos insetos sob sua pele.
Ernst von Fleischl-Marxow

Freud, que pensava atingir fama e reputação com base em seu trabalho com a cocaína, viu-se em meio a uma polêmica, apenas três anos depois da publicação de seu trabalho. Erlenmeyer, uma autoridade em toxicodependência, chegou a acusá-lo de ter liberado “o terceiro flagelo da humanidade” (após o álcool e os opióides). Para defender-se, Freud afirmou que a cocaína não causava dependência e que apenas aqueles que anteriormente apresentavam dependência de morfina tornavam-se dependentes de cocaína.

Ao final da década de 1880 ocorreu uma epidemia de cocaína, com a droga sendo injetada pelas classes média e alta. Quase duzentos relatos médicos sobre intoxicação sistêmica por cocaína foram escritos até 1891, treze descrevendo mortes atribuídas à droga. Contrariando o esperado por Freud, um de seus pacientes faleceu de overdose. Robert Louis Stevenson usou a substância enquanto escreveu “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e o Senhor Hyde”. Sherlock Holmes, personagem de Arthur Conan Doyle, injetava cocaína quando entediado pela falta de casos desafiadores. Como resultado do interesse do público, a produção de cocaína pela farmacêutica alemã Merck aumentou de 0,4 quilos em 1883 para 83,343 quilos em 1885. Da mesma forma, o preço da substância cesceu dramaticamente.

Enquanto o entusiasmo europeu pela droga era reduzido pelos diversos relatos de efeitos adversos, o interesse nos Estados Unidos permaneceu alto. Em 1887, o médico americano William Hammond recomendou que a cocaína fosse utilizada no tratamento da depressão, afirmando que não existia um “hábito de cocaína” e que qualquer um poderia abandonar o uso assim que desejasse. Em 1884, William Stewart Halsted, um renomado cirurgião norte-americano, publicou o primeiro de seus trabalhos sob a cocaína. Já em 1883 Koller, impressionado pelo trabalho de Freud, descreveu os poderes anestésicos da substância em cirurgias oculares. Halsted, entretanto, desenvolveu o anestésico para “bloqueio nervoso”. Infelizmente, como muitos de seus colegas da época, Halsted e vários de seus assistentes utilizaram a droga para fins experimentais e tornaram-se gravemente dependentes. Halsted passou por diversas hospitalizações e, numa tentativa reversa do que tinha sido preconizado até então, passou a utilizar morfina para “curar” seu vício em cocaína. Halsted faleceu em 1922, ainda dependente de morfina.

Nos próximos posts: A Era dos Medicamentos Patenteados e o desenvolvimento da moderna epidemia de dependência de cocaína (assim como as referências).

Fotos:
http://library.thinkquest.org/C0115926/drugs/Erythroxylum_coca_Specimen_7239.jpg
http://www.goddessaday.com/images/mama-quilla-160x214.jpg
http://portrait.kaar.at/Musikgeschichte%2019.Jhd/images/albert_niemann.jpg
http://image.absoluteastronomy.com/images/encyclopediaimages/f/fl/fleischl_marxow_2.jpg

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terça-feira, 13 de julho de 2010

O crack: a cocaína da elite chega à periferia

Nomes de rua: Crack, Freebase, Pedra, Rock, Base

O crack é a versão fumada da cocaína, que provê um curto, mas extremamente intenso efeito. A invenção do crack representou uma inovação tecnológica que dramaticamente aumentou a disponibilidade e o uso de cocaína de várias maneiras. O crack pode ser fumado, fato que, do ponto de vista psicofarmacológico, é uma maneira mais eficaz de administrar a droga. Como o crack é composto primariamente de ar e bicarbonato de sódio, é possível vendê-lo em pequenas unidades que contém frações de grama de cocaína pura, o que abriu o mercado a consumidores que não poderiam obter a cocaína, muito mais cara. Como a droga é extremamente viciante e o efeito do uso é demasiado curto, o crack rapidamente gera um grande número de usuários que desejam comprá-lo cada vez mais frequentemente. Os lucros associados com a venda do crack rapidamente eclipsaram os de outras drogas.

Virtualmente desconhecido antes da década de 1980, o crack se espalhou rapidamente nos EUA, partircularmente entre as comunidades negras e hispânicas (Bourgois 1996, Chitwood et al 1996, Fryer et al 2005). Nos anos 70, uma pequena porção de usuários passou a misturar a cocaína (que se fumada não possui efeito euforizante) com éter, para inalação. Esse processo, criou freebase, ou base livre de cocaína, uma droga extremamente perigosa, que causou um certo número de óbitos. O crack, surgido nos anos 80, é outra forma de cocaína fumada, produzido ao se dissolver cocaína em pó em água, com a adição de bicarbonato de sódio (mais comumente) ou amônia e calor. A cocaína e o bicarbonato de sódio formam um condensado leve que, quando seco, toma forma de “pedras” duras, passíveis de serem fumadas. O nome crack deriva do som gerado quando a substância é aquecida. Este processo aparentemente foi iniciado nas ruas decadentes de Miami. Vendido em pequenas quantidades nas ruas, o crack proporcionou um mercado lucrativo para traficantes e gangues de rua (Bourgois 1996, Jacobs 1999).

cocaina freebase


Em setembro de 1986 o então presidente americano Ronald Reagan, acompanhado da primeira dama, informou a nação, em um discurso histórico, que

“As drogas ameaçam nossa sociedade. Elas ameaçam nossos valores e minam nossas instituições. Elas estão matando nossas crianças. (...)Nosso trabalho nunca é fácil pois estes criminosos das drogas são engenhosos. Eles trabalham diariamente para tramar novas e melhores maneiras de roubar a vida de nossas crianças da mesma forma que eles fizeram ao desenvolver esta nova droga, o crack. Para cada porta que fechamos, eles abrem uma nova porta para a morte. Eles prosperam na nossa falta de vontade em agir. ”
Ronald Reagan, “Address to the Nation on the Campaign Against Drug Abuse”, 14 de Setembro de 1986.

Ao final de 1986 mais de mil histórias sobre o crack apareceram na imprensa americana (Glenn, 2006). Esta cobertura midiática foi instrumental em produzir uma consciência pública da percepção de que crack era uma epidemia. Apenas dois anos antes, um estudo do Alcohol, Drug Abuse and Mental Health Aministration (ADAMHA) praticamente não citava o crack como problemático (Glenn, 2006). O consumo de crack nos EUA cresceu rapidamente em 1985, tendo seu pico em 1989 e declinando ligeiramente desde então. O padrão de consumo naquele país concentra-se principalmente em grandes cidades, partircularmente naquelas com grandes comunidades negras e hispânicas. Na Europa, o crack é consumido e visto como droga dos pobres das grandes cidades, embora também seja consumido pelas classes médias, mas sem o aspecto de “epidemia”, como o que ocorreu nos EUA ou no Brasil.

No Brasil o crack aparece nas estatísticas do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil de São Paulo (DENARC) pela primeira vez em 1989. Segundo Domanico (2006), as condições de exclusão sócio-econômica de diversos setores da juventude brasileira assemelhavam-se às condições de exclusão norte-americanas, o que permitiu com que o crack se espalhasse rapidamente no país. Ainda segundo esta autora, a difusão do crack nas grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo ocorreu de forma periférica, devido à atuação dos traficantes estabelecidos nestes grandes centros, que tentaram impedir a venda do crack pois acreditavam que este seria contraproducente aos seus negócios.

Efeitos físicos


Os efeitos farmacológicos do crack são essencialmente os mesmos da cocaína. Entretanto, como o crack é fumado, o início da ação é muito rápido. Os principais efeitos físicos são boca seca (xerostomia), perda de apetite, sudorese, aumento da frequência cardíaca, ardor nos olhos por irritação da conjuntiva, e cefaléias. O uso repetido de cachimbos de crack, que podem se tornar muito quentes, pode resultar em uma condição conhecida como “crack-lip”, que envolve queimaduras aos lábios e boca.

Forma de administração

O crack é frequentemente fumado, mas também pode ser injetado se dissolvido em sumo de limão ou vinagre e aquecido (pelo mesmo método de preparação da heroína).

Dependência e Abuso

A curta meia-vida da droga (entre 30 a 60 minutos) e a intensa euforia, seguida de sentimentos de depressão e anti-clímax causam poderosa dependência psicológica. Os usuários podem facilmente despender centenas em um dia de binge (uso de forma exaustiva e impulsivo). Parece haver um forte traço compulsivo para muitos comportamentos relacionados ao crack e padrões de uso e compra da substância (mesmo atitudes criminosas) tornam-se ritualizados. Muitos usuários frequentemente utilizam outras drogas (como o álcool, por exemplo) para atenuar os sintomas de abstinência do crack.

Efeitos a longo prazo

O efeito aos pulmões pode ser muito sério, e usuários de longo prazo podem adquirir enfisema. Este é causado tanto pelo fumo intenso quanto pelas substâncias utilizadas quando da preparação do crack.

Referencias:
1. Bourgois, P. 2002. In Search of Respect: Selling Crack in El Barrio. Cambridge University Press
2. Chitwood D, Rivers J, Inciardi J. 1996. The American Pipe Dream: Crack Cocaine and the Inner City. Austin: Harcourt Brace College Publishers.
3. Fryer Jr RG, Heaton PS, Levitt SD, Murphy KM. 2005. Measuring the impact of crack cocaine. NBER Working paper No. 11316, National Bureau of Economic Research. Available at http://www.nber.org/papers/w11318.pdf.
4. Jacobs B. 1999. Dealing Crack: The Social World of Streetcorner Selling. Boston: Northeastern University Press.
5. Glenn JE. The Birth of the Crack Baby and the History that “Myths” Make. Available at http://www.utmb.edu/addiction/Birth%20of%20the%20Crack%20Baby.pdf.
6. Domanico A. “Craqueiros e Cracados: Bem vindo ao Mundo dos Nóias!” Estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetos-piloto do Brasil. 2006. Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal da Bahia. Disponível em http://www.scribd.com/doc/7265159/Tese-Andrea.

Foto: http://lawyersusaonline.com/dcdicta/files/2007/12/crack.jpg
http://www.drunkdrivingdefense.com/images/cocaine02.jpg

A propósito:

Recebi este link pelo twitter, que leva à pagina sobre o crack do Ministério da Saúde com maiores informações sobre o crack:
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=33717&janela=1

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segunda-feira, 12 de julho de 2010

A problemática da toxicodependencia

Uma epidemia de toxicodependência assola o Brasil desde o início dos anos 90 e toda a população sofre as consequências. O pensamento dominante de que o dependente químico é problema da família ou da polícia há muito deixou de encantar. Numa sociedade vitimizada pela avalanche das drogas, todos sofrem, desde o toxicodependente e seus familiares diretos às vítimas diretas da violência do tráfico. No meio deste percurso de demanda e oferta, comunidades são depredadas e perdem seu valor comercial devido à violência, perdemos nossos parques e praças públicas para o constante desmantelamento por parte de indivíduos que apresentam comportamentos antissociais e por medo da violência nos trancamos e perdemos nossa liberdade individual.


Atuar na problemática das drogas requer fino conhecimento da dinâmica do tráfico, que evolui com as mudanças da sociedade, disponibilizando “novas” drogas quando as até então disponibilizadas tornam-se estigmatizadas e de difícil permeabilidade nos novos mercados. Surgem então as designer drugs ou drogas de desenho, que contam não apenas com novos nomes e compostos mas com nova estratégia mercadológica e consumidor final. Estudar como as novas gerações percebem e vivenciam as drogas para prevenir novas epidemias, conhecer os efeitos de cada uma delas e estar alerta para novas ameaças que surgem devido à guerras ou mudanças geopolíticas nos governos de países ligados à produção das drogas também é essencial para se entender os problemas atuais. Mas mais do que isso, atuar a fundo nesta problemática muitas vezes requer medidas políticas que não são populares, como fornecer seringas a usuários de heroína, nem têm resultados facilmente demonstráveis a curto prazo.

O objetivo dos próximos posts não é fornecer informação detalhada sobre os principais sintomas e consequências do uso de drogas. Existem diversas publicações no mercado sobre o assunto que abordam este assunto de forma muito mais aprofundada do que as palavras a seguir. Com estes posts tento fazer um passeio histórico, um esclarecimento sobre o percursso que tomamos como humanidade no uso de drogas, para tentar assim entender os pilares da epidemia de drogas atual, seja o crack no Brasil ou a heroína na Europa. Com o conhecimento histórico pode-se observar como algumas drogas entram e saem da moda, voltando com um rótulo novo, mas sempre causando as mesmas consequências.

Os posts foram retirados de um trabalho que realizei para melhor entender a progressão histórica das drogas e seu entendimento moderno. Pode-se dizer que escrevi um "rascunho de um livro" que agora compartilho com os leitores do blog.


Foto: http://img.timeinc.net/time/quotes/2008/10/1015_meth.jpg

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