quarta-feira, 31 de março de 2010

O mito de Medeia: quando os pais matam seus filhos

Medeia ou Medea é uma personagem da mitologia grega, descrita extensivamente na peça Medea, de Eurípedes e no mito de Jasão e os Argonautas.
Medeia era uma mortal da Cólquida, filha do rei e neta do deus do sol Helio. Em diversos mitos Medeia é descrita como uma feiticeira, muitas vezes ligada à deusa Hécate (deusa da bruxaria e das encruzilhadas).

A história desta mulher inicia-se com a chegada de Jasão a Cólquida, para obter o Velo de Ouro (a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo) necessário para sua volta ao trono da Tessália. Medeia apaixona-se por Jasão e promete ajudar-lhe, com a condição de que se ele obter o Velo de Ouro, os dois se casem.
Para que Jasão obtenha o poderoso Velo, ele teve de realizar certas tarefas. A primeira delas consistia em lavrar um campo com dois touros gigantecos, de cascos de bronze e que expeliam fogo pelas narinas. Medeia deu-lhe um unguento para proteger a si e suas armas do fogo.
A segunda tarefa consistia em semear um campo lavrado com dentes de um dragão. Dos dentes nasceu um exército de violentos guerreiros mas Jasão havia sido avisado por Medeia, que lhe aconselhou a jogar uma pedra no meio deles. Sem saber de onde veio a agressão, os soldados atacaram uns aos outros. Finalmente Jasão deveria matar um dragão insone que guardava o Velo. Medeia colocou a besta para dormir, utilizando poderosas ervas narcóticas. Jasão então tomou o Velo de Ouro e foi-se embora com Medeia, conforme prometido.

Para garantir sua fuga, Medeia matou seu irmão Apsirto e desmembrou-o pelo caminho, sabendo que seu pai ficaria devastado com a perda e pararia para coletar os restos do filho, garantindo-lhe um funeral adequado. Desta forma, Medeia e Jasão conseguem embarcar na nau Argos e fugir da Cólquida.
Após diversas aventuras e muita crueldade (por parte dos dois), o casal chega a Corinto, onde Jasão se apaixona pela filha do rei, Gláucia, e abandona Medeia.

Na peça de Eurípedes, Jasão confronta Medéia e tenta explicar-se, dizendo que não poderia deixar passar a oportunidade de se casar com uma princesa, enquanto que Medéia é apenas uma mulher bárbara e conta-lhe que pretende juntar suas duas famílias mantendo-a como sua amante. Ela lembra-lhe que deixou sua família para trás para seguí-lo e salvou-lhe a vida diversas vezes. Ela fica desolada e resolve vingar-se enviando à Gláucia um vestido e uma pequena coroa envenenados, o que resulta na morte da princesa e do rei, que correu para acudí-la.

Cega de dor e de ódio, Medéia decide matar seus filhos também, com o intuito de causar o máximo de dor a Jasão. Na peça, ela sai do palco para buscar uma faca e os gritos dos meninos são ouvidos nos bastidores. Jasão corre para vingar-se, mas vê Medeia à distância, em uma carruagem dourada enviada por seu avô, Hélio, deus do Sol, a dizer:
"Eu nem mesmo deixo-te os corpos dos nossos fihos; eu os levo comigo para enterrar. E para vós, que me fizeste todo o mal, eu profetizo uma maldição final."

Medéia passa ainda por muitas aventuras e o filicídio, de certa forma, fica sem ser vingado nos mitos gregos que lhe dizem respeito. Mesmo o fratricídio cometido é de certa forma perdoado quando ela retorna à Cólquida e ajuda seu pai a retornar ao trono, que tinha-lhe sido usurpado pelo tio.

Medeia prepara-se para matar os filhos em óleo de Eugène Ferdinand Victor Delacroix (1862).

















Este mito me veio à memória após acompanhar nos noticiários ingleses o julgamento de Petros Williams, um pai que matou seus filhos em um acesso de raiva e o caso Nardoni.

Petros Williams descobriu que sua ex-mulher estava a namorar online e, num acesso de ciúmes, estrangulou os dois filhos com os cabos do computador e tentou matar-se com uma overdose de medicamentos. Ele foi hoje condenado a 28 anos de prisão.

Infelizmente estes exemplos não são singulares ou raros. Casos de filicídio, seja pelo pai ou pela mãe povoam as páginas policiais de qualquer país, sendo talvez mais predominantes em algumas culturas do que outras (como na China e em países nos quais o nascimento de uma menina é visto com maus olhos).

Antes de iniciar a análise do mito e dos filicídios reais, cabe uma análise dos termos filicídio, neonaticídio e infanticídio, muitas vezes utilizados de forma intercambiável na literatura do homicídio infantil. Bourget et al. (2007) caracteriza filicício como o assassinato de uma criança por um dos pais, enquanto neonaticídio caracteriza o assassinato de um recém-nascido no dia do nascimento. Embora infanticídio seja corriqueiramente utilizado em referência a homicídio infantil, o termo tem implicações médico-legais, e se aplica especificamente ao assassinato de crianças menores de 12 meses de idade por uma mãe que não se recuperou completamente dos efeitos da gravidez e lactação, sofrendo em algum grau de transtornos mentais.

Diversos autores analisaram o filicídio, tentando dissecá-lo e caracterizá-lo (Bourget et al. 2007, Farouque 2003, Resnick 1969, Wilczynski 1995):

Filicídio altruísta
Um dos pais tenta livrar a criança de sofrimento real ou imaginado, geralmente acompanhado de suicídio.

Filicídio psicótico
Um dos pais mata a criança sob influência de doença mental grave

Filicídio do filho indesejado
A vítima nunca foi ou não é mais desejada pelos pais. Geralmente cometido em circunstâncias de filhos ilegítimos ou paternidade incerta.

Filicídio acidental
Morte sem dolo secundária a abuso infantil

Filicídio de retaliação (Wilczynski, 1995)

No qual o ódio a uma pessoa é deslocada à criança. É o caso de Medeia e de muitos outros encontrados nas páginas policiais (como o descrito acima, na Inglaterra). A pessoa alvo dos sentimentos de ódio e do filicídio é em geral o parceiro do perpetrador. Como a fonte de angústia nos filicídios de retaliação é o parceiro sexual do perpetrador, estes assassinatos são denominados "Complexo de Medeia". Mas quão típico são os filicídios da vida real, quando comparados ao caso protótipo de Medeia?

O mito e o Complexo de Medeia certamente são populares e encontrados de forma recorrente na ficção, em estereótipos como o ditado americano "hell hath no fury like a woman scorned" (não existe fúria como a de uma mulher traída). Exemplos na ficção são encontrados no filme Atração Fatal (Fatal Attraction), no qual a amante rejeitada direciona sua atenção assassina ao ex-amante, sua mulher, filha e até mesmo ao coelhinho de estimação.
Atração Fatal

Entretanto, segundo Wilczynski (1995), homens e não mulheres são muito mais propensos a cometer assassinatos de retaliação. Homens e mulheres tendem a matar seus filhos por razões bastante diferentes: homens são geralmente associados a retaliação, disciplina ou rejeição por parte da vítima. As mulheres, por outro lado, matam pois o filho não era desejado (tipicamente neonaticídio, cuja mãe escondeu a gravidez);  porque o assassinato foi percebido como melhor escolha para criança (filicídio altruísta); ou porque a mãe estava em estado psicótico no momento do crime.

Segundo Bourget (2007), o filicídio de retaliação por parte da mãe é raro e é mais cometido por mulhres com transtornos de personalidade e história de tentativas de suicídio. Também parece haver relação entre o sexo da vítima, sendo que filhas são mais provavelmente assassinadas em filicídios altruístas e filhos em filicídios de retaliação.

A história do relacionamento dos pais tende a revelar um ambiente hostil, cheio de conflitos, com atos violentos de um ou ambos os parceiros, sendo uma das principais motivações para os conflitos e o assassinato o ciúme e suspeitas de infidelidade.
A retaliação por parte dos homens parece ser uma extensão natural de seu poder e controle sobre a família e o relacionamento sexual. As atitudes das mulheres são percebidas por estes homens como um desafio à sua autoridade e masculinidade ao deixá-los e ao iniciar relacionamentos com outros homens.
De forma oposta, as mulheres, segundo Wilczynski, apresentam comportamento retaliador devido ao ressentimento pela falta de poder no relacionamento.

Especificamente no que tange ao "Complexo de Medeia", Farooque relata que o mesmo foi descrito no auge da psicanálise (1944) como o "ódio inconsciente de uma mãe por sua filha que amadurece, vista como uma rival em potencial." Mesmo na época áurea da psicanálise o construto passou por diversas crítcas pois, para começar, Medeia não teve filhas, mas filhos com Jasão e estes autores se apoiavam em construtos irrefutáveis e tautológicos iniciados em Freud (ex. a existência de impulsos filicidas em todas as mães). Farooque argumenta que ao final do século 20 é aparente que estes construtos ajudaram muito pouco no entendimento da etiologia do filicídio e apenas distraíram investigadores científicos de fatores mais mundanos e práticos como uso de drogas ou capacidade intelectual do perpetrador.

Ataques a outras pessoas

Outro aspecto incomum do mito de Medeia, que parece não ter correlação com as mães que cometem filicídios no mundo real é a violência direcionada a outras pessoas (como à seu irmão e à princesa Gláucia, no mito). De acordo com a literatura é muito mais provável que homens apresentem este comportamento, com cerca de um sexto dos perpetradores tendo apresentado comportamento violento direcionado a outras pessoas na época do filicídio ou descrito impulsos para violência. Além disso, os homens apresentavam maior probabilidade de causar injúrias mais sérias.

Violência doméstica

Um aspecto do mito que realmente é bastante típico dos casos reais é a história de abuso físico e emocional no relacionamento. Na peça de Eurípedes, Jasão humilha Medeia e a rebaixa de esposa a amante, chamando-a de bárbara e inferiorizando-a em comparação à Glaúcia (abuso emocional). A porcentagem de mulheres filicidas abusadas nos relacionamentos é contraditória na literatura, variando de um terço das amostras investigadas a 80%. Em contraste, poucos homens filicidas relatam terem sofrido violência doméstica, embora muitos tenham sido apontados como maridos violentos anteriormente ao assassinato.

Diversos outros fatores devem ser considerados na análise de filicídios, como a existência de transtornos mentais graves do Eixo I, cultura (índios da Amazônia, por exemplo, costumam matar crianças com debilidades ou problemas físicos), religião e outros que não foram alvos de estudo na descrição deste post.

Abraão prepara-se para matar Isaac, seu filho, para provar sua fidelidade a Deus (Genesis 22:1-24) e é impedido por um anjo. Óleo de Rembrant, 1634.

Por fim, o mito de Medeia é uma história fascinante de completa dedicação a um amor e de escórnio, humiliação e assassinato. Embora o mito seja bastante alegórico e possa ser considerado um caso protótipo de filicídio, é relativamente raro que mulheres sejam as perpetradoras de filicídio de retaliação ou que as mães filicidas tenham antecedentes de violência a terceiros. Embora o mito de Medeia seja poderoso na descrição de um filicídio motivado por ciúme e rejeição, ele é apenas isto, um mito, não encontrando ressonância nos casos reais analisados na literatura.


 Medeia planeja sua vingança em cena do filme "Medea" de Lars Von Trier (1988), baseado na peça de Eurípedes

Referências:

ResearchBlogging.org
Bourget D, Grace J, & Whitehurst L (2007). A review of maternal and paternal filicide. The journal of the American Academy of Psychiatry and the Law, 35 (1), 74-82 PMID: 17389348

Euripedes, Medea. Google Books, disponível na íntegra no link

Farooque R, Ernst FA (2003). Filicide: a review of eight years of clinical experience. Journal of the National Medical Association, 95 (1), 90-4 PMID: 12656455

Resnick PJ. Child murder by parents. American Journal of Psychiatry. 1969; 126:325-334. In: Farooque & Ernst (2003).


Wilczynski, A. (1995). Murderous Mothers and the Medea Myth: A Commentary on 'Medea: Perspectives on a Multicide' Australian Journal of Forensic Sciences, 27 (1), 6-12 DOI: 10.1080/00450619509411318

Fotos:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/38/Eug%C3%A8ne_Ferdinand_Victor_Delacroix_031.jpg
http://www.rollogrady.com/wp-content/uploads/2009/05/fatal-attraction-800-75.jpg

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terça-feira, 30 de março de 2010

Panis et circenses: O caso Nardoni

Eu havia prometido a mim mesma que não escreveria nada sobre o caso Nardoni, já que mesmo que esteja acompanhando a cobertura da imprensa, estou fora do Brasil e do redemoinho todo causado pela mídia.

E foi por isso mesmo que resolvi escrever este post. Justamente pelo fato de estar fora do país, e desta forma, livre da influência da mídia brasileira (para bem ou para mal).

Para os leitores portugueses, o caso Nardoni diz respeito ao assassinato de uma criança de 7 anos (se não me engano), alegadamente pelo pai e madrasta: Pai, madrasta, criança e bebês (filhos do casal) saíram para jantar. Na volta, em circunstâncias muito nebulosas, Isabela caiu ou foi jogada do 7º andar (se não me engano). Aparentemete a rede de proteção fora cortada e a menina estrangulada antes de ser atirada pela janela. O pai e madrasta acreditam que um estranho matou a menina enquanto eles buscavam os filhos menores na garagem do prédio. A promotoria defende que o casal agiu juntos.
O caso todo aconteceu há 2 anos e causou comoção. Voltou à mídia brasileira nos últimos dias pois o julgamento ocorreu na semana passada, aberto à imprensa e com um juíz que fez uso do twitter(!).

É aqui que falo em panis et circenses.
"Pão e circo" é uma metáfora conhecida para esmolas que os políticos utilizam para ganhar apoio popular, ao invés de desenvolver políticas fortes para o país. Entretato, é o segundo significado da expressão que me interessa aqui, a metáfora que também serve para criticar a população que abandona seu dever cívico por migalhas.
O uso moderno da expressão tornou-se um adjetivo para categorizar uma população que não mais valoriza as virtudes cívicas, e denota a trivialiade e frivolidade que definiram o Império Romano pouco antes de sua queda.... e o declínio da sociedade moderna.

Sim, porque a histeria em massa ocorrida no Brasil por conta deste caso só pode mesmo ser categorizada se entendermos este conceito. Independentemente de serem culpados ou não (não cabe a mim julgá-los ou condená-los), eles foram julgados e condenados 2 anos atrás.

A imprensa brasileira deveria saber melhor após o escândalo da Escola de Base (caso no qual donos de uma escola infantil foram acusados injustamente de abuso sexual infantil, tiveram seus bens depredados, foram presos e tiveram seus nomes arrastados na lama e no final a denúncia não tinha qualquer base). O casal Nardoni foi vilificado, seus parentes próximos ameaçados e mesmo pessoas que apenas compartilham o sobrenome/apelido Nardoni receberam telefonemas ameaçadores simplesmente por constarem na lista telefônica.

A população (ou o populacho?), associado à cobertura parcial da imprensa bradava por justiça... Será que nesta cultura de pão e circo a palavra justiça manteve seu significado intacto? O blog Jornalisticamente Falando traz o seguinte comentário:

É notório e urge dizer que ninguém pode ser condenado sem prévio processo legal devidamente realizado, garantindo-se os princípios constitucionais que norteiam o processo, como o da ampla defesa e do contraditório. Sem esse processo, voltaríamos aos velhos tribunais ad hoc (de exceção), em que julgava-se pela conveniência da sentença e não no sentido de alcançar a verdade e uma pena justa.
Quem gritou durante todos estes dias do julgamento por “Justiça” e condenou previamente o casal Nardoni, pode um dia sentir sobre si o peso da mão forte e impassível do Estado sobre suas costas, os mesmos que xingam o advogado (profissional no pleno exercício de suas atribuições constitucionais) podem desesperadamente precisar de um algum dia. O advogado não é cúmplice dos réus, é um profissional habilitado para defendê-los de arbitrariedades do Estado e garantir que lhes seja proferida a menos injusta das sentenças.
(...)
Também é condenável o espetáculo macabro criado entorno do assunto pela mídia. É preciso estabelecer regras para evitar o circo criado. Antes do julgamento, batalhões de fotógrafos e cinegrafistas cercavam acusados, advogados e envolvidos, fazendo até que a avó de Isabella acenasse para a câmera, como se fosse uma espécie de estrela de novela. É mesmo necessária esta especularização? (...) Jornalista não tem que afirmar que a pessoa A ou B é culpada, nem incitar o público. Há de se informar imparcialmente, sem afobações e sem espetacularização. A imprensa mais uma vez cometeu o erro cometido em outrora, como no caso que citei anteriormente.
"A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal, a balança sem a espada é a impotência do direito". – Rudolf von Jehring

Ao final do julgamento o casal foi condenado a 31 anos (para o pai) e 26 anos (a madrasta) de prisão. Porque este caso em especial causou tanta comoção? Tantas pessoas morrem todos os dias no Brasil de forma violenta, tantas crianças abusadas e assassinadas, porque os Nardoni? Talvez porque aqueles que morrem todos os dias nas favelas brasileiras, vítimas da pobreza e da violência do tráfico não ressoem na nossa empatia... afinal, eles não são como nós. Eles são pobres, vivem às margens da sociedade, são negros (e aqui o racismo e as diferenças de classe afloram)...
Já o casal Nardoni é branco, de classe média, vivia em apartamento de 3 quartos, dirigia os carros que nós dirigimos... E talvez esta "proximidade" desconfortável com alguém capaz de matar o próprio filho cause reações em nós mais sanguíneas e viscerais, numa tentativa de repelir aquela mal estar de pensar que "este poderia ter sido eu".

E aí, conforme o psiquiatra Daniel Martins de Barros, é necessário purgar este sentimento, fazer como na Idade Medieval, no qual as bruxas eram condenadas rapidamente para "limpar" a sociedade, numa fogueira, porque o fogo purificava e queimava junto com a vilã os maus fluidos que existiam no ar dos vilarejos (o mal estar simbolizado num mal ar?)

O julgamento e as reações ao caso Nardoni dizem mais sobre nós do que estamos confortáveis para admitir. E quanto mais ignorante e frívola a sociedade, maior a manifestação nas ruas por "justiça" e pela volta dos tribunais de execução... Panis et circenses, quod est demonstrandum.

Recomendo a leitura do post do psiquiatra forense Daniel Barros: Nardoni, os bruxos da vez

Fotos:
http://karenswhimsy.com/roman-gladiators.shtm
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/18/Inquisition.jpg/800px-Inquisition.jpg

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segunda-feira, 29 de março de 2010

Uma patografia de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas

Com o lançamento do último filme de Tim Burton, Lewis Carroll e seus livros (Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho) estão na mídia e uma colega psicóloga que estudou e trabalhou comigo sugeriu este tema.

Patrícia, este texto é para você e para sua pequenina!

Este post é uma patografia de Lewis Carroll. Patografia é um estudo retrospectivo de "casos clínicos focados na biografia de determinada personalidade famosa portadora de transtorno mental, com objetivo de apresentar elementos psicopatológicos interessantes e o significado destes para sua obra" (ABP, 2000)

Lewis Carroll não era seu verdadeiro nome, mas um pseudônimo literário adotado por Charles Lutwidge Dodgson. Entretanto, para fins de simplificação, vou chamá-lo de Lewis Carroll por todo o texto.

Lewis Carroll

História Pregressa

Carrol nasceu em 27 de janeiro de 1832 na Inglaterra, em uma família do norte conservadora e religiosa. Muitos ancestrais do autor eram oficiais do exército ou clérigos da Igreja Anglicana. Seu avô paterno, um oficial do exército, moreu no campo de batalha quando seu pai ainda era bebê. Seu pai era um bom aluno, com um futuro acadêmico brilhante à sua frente, mas optou por seguir a carreira da igreja e casou-se com sua prima primeira em 1827 e assumiu uma igreja rural. O pai do autor era um homem bastante conservador nas suas visões da igreja e estava constantemente envolvido em disputas políticas.

Carrol nasceu em 1832, em uma frataria de 11 irmãos. Carrol foi o terceiro filho, mas o primeiro filho homem do casal.  As crianças foram educadas em casa. A lista de livros selecionados para seus estudos demonstra uma aptidão literária precoce. Tanto ele quanto seus irmãos sofriam de gagueira, uma condição que influenciou sua vida social nos anos seguintes. Aos 12 anos ele foi enviado para uma escola privada nos arredores de sua casa, na qual parece ter sido feliz. Aos 14 anos, porém, foi enviado para outro colégio do qual escreveu:
"Eu não posso dizer... que qualquer circuntância terrestre me induziria a reviver aqueles três anos novamente... Eu posso honestamente dizer que se pudesse ter ficado seguro... dos problemas à noite e das labutas da vida diária, a vida teria sido comparativamente mais fácil de se levar."
Apesar das dificuldades sociais e pessoais, Carroll era um excelente aluno.

Algumas fontes trazem que a gagueira de Carroll só ocorria quando estava em companhia de adultos, nunca na companhia de crianças, mas há poucas evidências desta teoria. Embora a condição incomodasse o autor grandemente, ela nunca foi suficientemente debilitante para impedir seu desempenho social.

Carroll deixou o colégio aos 17 anos mas apenas ingressou na Universidade de Oxford aos 19 anos. Sua vida nestes dois anos permanece um mistério. Após apenas dois dias na universidade ele recebeu uma carta chamando-o de volta a casa pois sua mãe havia falecido de "inflamação do cérebro" aos 47 anos de idade.

Voltando à universidade, sua carreira oscilava entre altamente promissora e terrivelmente distraída. Em geral, Carroll não estudava muito mas era excepcionalmente dotado e saía-se bem nos testes. Em 1852 ele recebeu um First in Honour Moderations (equivalente a 80% ou mais dos créditos disponíveis) e recebeu uma bolsa de estudos. Um pouco mais tarde, porém, ele falhou em conseguir outra bolsa de estudos, o que atribuiu a sua incapacidade de aplicar-se seriamente com disciplina. De qualquer forma, seu talento como matemático assegurou-lhe uma docência na universidade, posto que ocupou pelos próximos 26 anos. O salário era bom, mas o trabalho tediante.

Desde a juventude Carroll escrevia poesias e contos, gozando de moderado sucesso. Entre 1854 e 1856 seus trabalhos apareceram em publicações nacionais e pequenas revistas. Ainda em 1856, um novo reitor, Henry Liddell, foi nomeado na universidade e trouxe consigo sua família: mulher e filho e três filhas, entre elas Alice. Há diversas evidências de que seus trabalhos foram baseados nesta criança e o poema ao final de Alice no Mundo do Espelho soletra o nome de Alice Liddell. Embora diversas referências a uma Alice real sejam encontradas em seus trabalhos, Carroll negou repetidamente no fim de sua vida que sua heroína tenha sido baseada numa criança real.

Aparentemente a amizade com a família Liddel era íntima e Carroll costumava levar as crianças a passear de barco (primeiramenteo menino, depois as três garotas). Foi num destes passeios, em 1862,  que Carroll começou o rascunho da história que se tornaria seu primeiro e maior sucesso comercial: Alice no País das Maravilhas.

Em 1871 foi publicado o segundo livro, Alice no Mundo do Espelho. O livro possui uma atmosfera mais sombria, provavelmente resultado da depressão em que o autor se encontrava após a morte de seu pai (1868).
Além da literatura, Carroll tinha também por hobby a fotografia. Rapidamente ele dominou a técnica e tornou-se um famoso fotógrafo, chegando a brincar com a ideia de tornar-se um fotógrafo profissional. Aparentemente mais de 50% das fotos realizadas por Carroll traziam como tema meninas. Seus trabalhos com crianças nuas foram presumivelmente perdidos, mas seis fotos foram encontradas recentemente, tendo sido publicadas e estão disponíveis online.
Carroll também se aventurou no campo das invenções, filosofia, jogos de lógica e trabalhos matemáticos, preferencialmente nos campos da geometria, matrizes e lógica, escrevendo quase uma dúzia de livros.
Na velhice ele continuou seu trabalho na universidade e lá permaneceu até sua morte, em 14 de janeiro de 1898. Carroll faleceu aos 65 anos, de pneumonia contraída após influenza.

Pedofilia

 

Evelyn Hatche, 8 anos

A preferência por amizades com meninas (entre 8 e 10 anos), a aparente falta de interesse em relações com mulheres, e leituras psicológicas posteriores de sua obra - especialmente fotografias de crianças nuas - são os fatores que alimentam a especulação de que Carroll tenha sido um pedófilo.
Após anos de amizade com a família Liddell, em 1963 houve uma ruptura, de certa forma abrupta, que parece ter sido causada pelo desejo de Carroll em se casar com Alice (então com 11 anos). Entretanto, nunca houve suficiente evidência para esta teoria e diversas páginas de seus diários, que fazem referência a este período, foram arrancadas provavelmente por familiares, na tentativa de preservar a reputação da família.

Praticamente todos os biógrafos de Carroll em anos recentes, incluindo Morton N. Cohen, Michael Bakewell and Donald Thomas, chegaram à conclusão de que Carroll era um pedófilo, mesmo que celibato. A evidência para esta conclusão, mesmo que circunstancial, é forte.

Carroll era um solteirão, que despendia a maior parte de seu tempo livre com meninas. Sua fotografia preferida era uma foto de Alice semi-nua, vestida como uma mendiga. Até mesmo o autor Vladimir Nabokov (autor de Lolita) chamava seu personagem Humbert Humbert (o homem que se apaixona pela heroína de 11 anos) de Lewis Carroll, conforme admitiu em uma entrevista à Vogue em 1966.

Alice Liddell

Em um artigo de revisão ao New York Times em 1999, Boxer, especialista em fotografias, escreveu que o que emerge das fotografias de Carroll é bastante desconcertante. As crianças nas fotos estão em gritante contraste quando comparadas com as fotos de adultos, feitas pelo autor. As imagens infantis são ousadas, arteiras, misteriosas e sedutoras. Os modelos parecem estar tão felizes e à vontade com o setting quanto o fotógrafo. Carroll, por sua vez, conseguia obter algo de suas modelos que, por falta de uma palavra melhor, Boxer categorizou como sexual.

Carroll e Alice


Os trabalhos fotográficos de Carroll também incluem fotos de modelos adultos, mas nestes os modelos são geralmente pais com suas filhas: Em uma delas, George MacDonald, um amigo de Carroll está sentado com um livro enquanto sua filha se curva sobre ele. O braço do pai está em volta da cintura da menina, mexendo no seu cinto, como uma criança o faria. A mão da menina está no ombro de seu pai, como se ela fosse um adulto.


O trabalho fotográfico de Carroll é o que tem alimentado com mais força as declarações de que o autor era um pedófilo. Tal comportamento de proximidade com crianças também estimulou e foi o que deu início a seus trabalhos literários, conforme descrito acima. Carroll costumava levar as crianças Liddell para longos passeios de barco e aparentemente as entretinha contando histórias. A pedidos da pequena Alice, Carroll passou a escrever as histórias e assim surgiu seu primeiro livro.

O outro lado

Da mesma forma que existem defensores de que o autor era um pedófilo, diversos estudiosos e biógrafos acreditam que o autor tenha sido injustiçado. Liderados por Hugues Lebailly e Karoline Leach, estes pesquisadores sugerem que as fotografias de crianças nuas devem ser vistas à luz do "Culto da Criança Vitoriana", no qual a nudez infantil era percebida como uma expressão de inocência. Aparentemente, fotos de crianças nuas eram moda nos tempos do autor e a maioria dos fotógrafos famosos da época as tinham em seus portfólios. Muitos autores também dão outra interpretação às paginas arrancadas dos diários de Carroll, sugerindo que o autor teria tido um caso com a mãe de Alice e não com as filhas, justificando a retirada de tal informação pela família do mesmo.

Uso de drogas

Alegações de que Carroll usava o fungo ergot, do qual LSD foi eventualmente derivado também são populares. O ergot causa experiências psicoativas quando utilizado em grandes quantidades e era prescrito como tratamento para diversas condições no século 19. Enquanto que diversos artistas e poetas vitorianos obtiveram inspiração em drogas alucinógenas (como o Absinto) no século 19, não existe evidência de que Carroll realmente utilizou estas drogas.
Carroll, entretanto, era um utilizador pesado da cannabis (maconha). Na época a droga era legal e Carroll costumava comprar hashish (haxixe) constantemente.

Enxaqueca, macropsias e micropsias

Um artigo de 1999 do The Lancet, sugere que pelo menos uma parte das aventuras de Alice tenha sido baseada nas percepções de Carrol sobre suas auras enxaquecosas. Aura é um primeiro estágio da enxaqueca ou de crises convulsivas, no qual a pessoa pode experienciar alucinações (visuais, olfativas, auditivas, etc) e outras alterações perceptivas. Carroll notou as alucinações enxaquecosas pela primeira vez em uma página de seu diário de 1885, no qual escreveu que "havia experimentado, pela segunda vez, aquela estranha afecção óptica de ver fortificações que se movem, seguida de dor de cabeça". Devido ao fato de este fenômeno ter sido descrito apenas uma vez antes de Alice no País das Maravilhas ter sido publicado, muitos autores descartam esta teoria.
Os autores do artigo, entrentato, acreditam ter achado evidências que pode alterar esta opinião:

Os autores descrevem um rascunho desenhado por Carroll entre 1855 e 1862, no qual a figura é um elfo, desenhado meticulosamente excepto pelo fato de estar sem todo o lado direito do rosto, partes do ombro direito, sem punho e mão direitos. Esta estranha omissão, segundo os autores, parece sugerir um "round border defect (defeito de limites arredondados)... semelhante a um escotoma negativo". Escotomas negativos são fenômenos nos quais o paciente não vê partes de um objeto que seriam captadas por certas partes da retina, afetada pela enxaqueca.

A segunda sugestão para a teoria envolve uma entrada no diário de Carroll em 1856, no qual ele escreveu (a tradução é minha): "Consultei-me com o Senhor Bowman, o oculista, sobre meu olho direito: ele não parece pensar que algo possa ser feito para remediá-lo, mas recomenda-me que leia por longos períodos." Os autores especulam que o autor tenha procurado o oculista para tratamento do escotoma negativo que poderia ter produzido o defeito em seu desenho. Os autores concluem que a recorrência de alucinações cada vez mais familiares com o tempo poderiam "explicas as similaridades de outra forma inexplicáveis entre as experiências descritas nos dois livros "Alice".

A Síndrome de Alice no País das Maravilhas (SAPM)

A SAPM (nomeada em homenagem a Lewis Carroll), também conhecida como Síndrome de Todd, é uma condição de desorientação neurológica que afeta a percepção. Os pacientes geralmente apresentam macropsia (alucinações nas quais os objetos tornam-se gigantes), micropsia (objetos tornam-se pequenos), e outras alterações de tamanho e ou distorção das modalides sensoriais. A síndrome é geralmente associada à enxaquecas, tumores e ao uso de drogas psicoativas.
O autor não sofria desta síndrome (ao contrário do que muitos pensam), mas foi homenageado na sua denominação, visto que os sintomas são bastante similares às aventuras de Alice nas suas obras.

Para concluir, devo lembrar aos leitores que qualquer artigo de diagnóstico histórico é sempre cheio de obstáculos e perigos, visto que os sintomas não são descritos por um profissional de saúde e, mesmo que fossem, os critérios diagnósticos são fluidos e mudam de tempos em tempos. Para se garantir maior fidelidade deve-se sempre tentar utilizar fontes primárias como diários e cartas da pessoa afetada e alvo da descrição. O que se chamava enxaqueca no século 19 pode não ser entendido como tal no presente momento. Da mesma forma, os critérios diagnósticos em psiquiatria mudam com a sociedade e cultura e dificilmente pode-se impor um diagnóstico de pedofilia como o entendemos hoje aos filósofos gregos, por exemplo, visto que a iniciação de meninos por adultos era típica daquela cultura. Embora existam evidências de um interesse peculiar de Lewis Carroll por crianças, seja ele de cunho sexual ou não, todos os fatores descritos acima fizeram parte da vida e obra do autor e desta forma mereceram ser analisados individulamente neste post.

Referências:

ResearchBlogging.org

Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). (2000). Normas para publicação na Revista Casos Clínicos em Psiquiatria. Casos Clin Psiquiatria 2000; 2(2):102-102

Biblio.com. Lewis Carroll Biography & Notes.

Boxer S. Photography review; Girls Loved Him, Pedophile or Not. The New York Times, April 2, 1999.

Collingwood, Stuart Dodgson. The Life and Letters of Lewis Carroll
 
Evans RW, & Rolak LA (2004). The Alice in Wonderland Syndrome. Headache, 44 (6), 624-5 PMID: 15186310
 
Podoll K, & Robinson D (1999). Lewis Carroll's migraine experiences. Lancet, 353 (9161) PMID: 10218566

Reed B. Legend of Lewis Carroll has dark side. Gazette, The (Colorado Springs), Oct 26, 2006

Wikipedia. Lewis Carrol.

Fotos:
http://www.brokenstars.org/notes/wp-content/uploads/2009/12/lewis-carroll-03.jpg
http://sites.google.com/site/photographyoflewiscarroll/carroll-evelyn.hatch.age.8.jpg
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/05/Alice_Liddell_2.jpg
http://2.bp.blogspot.com/_Xvxt_UbB4ZY/STq6Es7TmbI/AAAAAAAAAAM/k-0Iu-OJmQk/s400/carroll%2520and%2520alice%2520kissing.jpg
http://www.jamesleland.com/wp-content/gallery/image_journal/george_macdonald.jpg
http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(05)74368-3/fulltext
http://www.broadwayworld.com/columnpic/936-009~Alice-in-Wonderland-Posters.jpg

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quarta-feira, 24 de março de 2010

Avaliação de risco de agressores sexuais

Fatores de risco

 • Maior número de agressões sexuais, maior chance de reincidir (Marshal et al, 1991)
• História criminal pregressa (Quinsey et al, 1995)
• Maior risco se (em ordem decrescente)
            • Ofensas contra crianças do sexo masculino
            • Ofensas contra meninas fora da família
            • Incesto (Furby et al, 1989)
• História de mais de um tipo de agressão sexual (Hauson e Brussiere, 1996)
• Evidência ao PPG de resposta a estímulos pedofílicos (Hauson e Brussiere, 1996)
• Evidência ao PPG de resposta a violência não-sexual (Rice et al, 1990)
• Elevação na Hare Psychopathy Scale* (Rice et al, 1990)
• Se durante a agressão inicial, o paciente apresentava baixa auto-estima, dificuldade em empatizar com a vítima ou altos níveis de raiva (Hauson e Brussiere, 1996)
• Ter sido vítima de abuso sexual, especialmente se severo e prolongado – risco de abusar de seus próprios filhos (Cormier e Cooper, 1982) ou de se tornar agressor sexual (McCormal et al, 1992)
• Presença de fantasias sexuais violentas (Due e Eldman, 1997)
• Isolamento social prolongado – presente em alguns assassinos

Outros fatores de risco

• Atitudes contra mulheres
• Atitudes em relação a sexo com crianças
• Presença de distorções cognitivas (o indivíduo percebe ou racionaliza que a vítima consentiu – Kennedy e Gwbin, 1992)
• Escolha de uma profissão que facilita o acesso a vítimas potenciais
• Uso de sadomasoquismo ou de pornografia infantil
• Presença de transtornos mentais comórbidos (Fazel et al, 2007)
• Abuso de álcool
• Patologia cortical, especialmente de lobo temporal (Lang, 1993)
• Transtorno de personalidade
• Diagnóstico de retardo mental
• Esquizofrenia – ligação entre psicose e agressão sexual
• Estado hipomaníaco
• Não adesão ao tratamento

Tratamento

Terapia psicodinâmica – faltam evidências

Terapia Cognitivo Comportamental (TCC)
Níveis modestos de redução no recidivismo (Losel e Schucker, 2005)
Desenhada para ajudar o indivíduo a assumir responsabilidade e ter controle para evitar situações de risco

Tratamento biológico

Castração cirúrgica
Menores taxas de recidivismo (Ortmann, 1980)
Utilizada nos EUA e Alemanha

Psicocirurgia
Utilizada na Alemana até 1970

Tratamento hormonal
Utilizado desde os anos 1960 – principal droga (Europa): Acetato de ciproterona oral (principalmente) e de depósito. Nos EUA o mais utilizado é o Depo Provera (Acetato de medroxyprogesterona)
Alguns pacientes mesmo assim não demonstram redução na excitabilidade sexual

Efeitos colaterais:
Acetato de ciproterona – ginecomastia, alterações hepáticas, humor depressivo, osteoporose
Depo provera – aumento do peso, fogachos, hipertensão arterial, aumento da glicemia, redução do tamanho testicular
Long-acting gonadotrophin releasin hormones analogues – pouco testado. Liberado apenas para tartar câncer de prostatae endométrio. Efeitos colaterais: osteoporose. (Goserelin, Triptorelin e Leuprolide)
ISRS – risco baixo a moderado de recidivas

Fatores legais no tratamento de agressores sexuais

Devem ser registrados/listados (sex offenders register)

Fatores éticos:

Antipatia pública
Pesar tratamento e efeitos colaterais
Problemas de confidencialidade
Conflito se medicamentos antilibido comprometem os direitos humanos ao impedir a liberdade de pensamento e direito a reprodução do paciente

*Hare Psychopathology Scale (PCL-R)
A PCR-L é uma ferramenta psicodiagnóstica comumente utilizada para avaliar psicopatia. É uma escala de 20 ítens registrada por um psicólogo ou outro profissional treinado. Um valor de 0 significa que o item não se aplica, 1 se aplica levemente, 2 se aplica completamente. A escala avalia estilo de vida, comportamento criminoso, discurso persuasivo, charme superficial, grandiosidade, necessidade de estímulos, mentira patológica, golpes e manipulação, falta de remorso, falta de empatia, fracos controles comportamentais, impulsividade, irresponsabiliade, falha em aceitar responsabilidade e outros. Os resultados são utilizados para averiguar risco de re-ofensa criminal e probabilidade de reabilitação.

Fotos:

Referências
ResearchBlogging.org
Hall, G. (1995). Sexual offender recidivism revisited: A meta-analysis of recent treatment studies. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 63 (5), 802-809 DOI: 10.1037/0022-006X.63.5.802

Guay, D. (2009). Drug treatment of paraphilic and nonparaphilic sexual disorders Clinical Therapeutics, 31 (1), 1-31 DOI: 10.1016/j.clinthera.2009.01.009

Schmucker M, & Lösel F (2008). Does sexual offender treatment work? A systematic review of outcome evaluations. Psicothema, 20 (1), 10-9 PMID: 18206060

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terça-feira, 23 de março de 2010

Avaliação do comportamento sexual anormal e de criminosos sexuais

Mais comum em homens que mulheres
Maiores taxas em homens na população geral: fantasias de iniciar adolescentes, fantasias de estupro

Parafilias

Transtornos mentais
Parafilias são fantasias, impulsos ou comportamentos sexualmente excitantes, recorrentes, intensas, que envolvem:

1. Objetos não humanos
2. Sofrimento ou humiliação do paciente ou do parceiro sexual
3. Crianças ou outras pessoas que não consentem com o ato

Deve haver marcado sofrimento ou prejuízo no funcionamento interpessoal, social, ocupacional ou outro

A visão de que as parafilias são transtornos mentais não é universal e os críticos afirmam que o termo "parafilia" continua sendo perjorativo na maioria das circunstâncias. Há também dificuldades em definir quais comportamentos são parafílicos e quais são variações normais do interesse sexual. Por exemplo, o DSM teve dificuldade em definir sadismo sexual em um parceiro consensual como transtorno parafílico e desta forma a categoria foi incluída o DSM-IV-TR com o adendo "a pessoa age baseada nestas urgências com outra que não consente; ou o comportamento causa importante dificuldades e dificuldades interpessoais".


Albert Eulenburg, um neurologista alemão com interesse na área da sexologia foi quem notou uma comunalidade através das diferentes parafilis e utilizou esta terminologia pela primeira vez:
"Todas as formas de perversões sexuais (...) tem uma coisa em comum: estão profundamente enraizadas na matriz da vida normal e nautral; elas estão de certa forma conectada muito de perto com sentimentos e expressões de nosso erotismo fisiológico. Elas são (...) intensificações, distorções hiperbólicas, frutos monstruosos de certas expressões parciais e secondárias deste erotismo considerado "normal" ou dentro dos limites dos sentimentos sexuais saudáveis."

Tipos:

Fetichismo
Excitação sexual por um objeto não-humano, geralmente peças de roupas. A textura pode ser relevante. Parcialismo é um tipo de fetichismo que envolve especificamente partes não sexuais do corpo.

Travestismo fetichista
Excitação sexual pelo uso de roupas do sexo oposto

Exibicionismo
Necessidade recorrente de exposição dos genitais a estranhos. Também pode ser a necessidade recorrente de realizar atos sexuais em espaços públicos, às vistas de observadores inocentes.

Voyeurismo
Excitação sexual ao observar uma pessoa que não suspeita do ocorrido a se despir ou engajada em atividade sexual

Pedofilia
Exictação sexual por crianças

Sadomasoquismo
Excitação sexual ao inflingir ou receber dor, ao exercitar poder ou por submissão a autoridade

Outros transtornos
Frotteurismo – esfregar-se ou tocar outro indivíduo, que não consente com o ato
Necrofilia (preferência sexual por cadáveres)
Escatologia (telefonemas obcenos a pessoas que não consentem)
Parcialismo (partes do corpo)
Zoofilia (preferência sexual por animais)
Coprofilia (excitação sexual por fezes)
Urofilia (urina)
Klismafilia (enemas)
Emetofilia (vômito)
Asfixiofilia (excitação sexual através de asfixia)

Aspectos clínicos

Maior nível de comorbidade com outros transtornos mentais. Pode estar associado com risco aumentado de auto-mutilação ou risco de agressão a outros. Pode ser responsivo a tratamento.

Parafilia opcional
rota alternativa para excitação sexual. Ex. um homem que às vezes se excita ao vestir roupas de mulher

Parafilia preferida
Pessoa que prefere a parafilia a atividades sexuais convencionais, mas também realiza estas últimas. Ex. um homem que prefere usar roupas de mulher durante a atividade sexual, sempre que possível.

Parafilia exclusiva
A pessoa não consegue ter relações sexuais na ausência da parafilia ou do objeto parafílico.

Aspectos legais
(Estes aspectos dizem respeito à lei inglesa)

 Comportamentos sexual desviante não é base para deter sob Mental Health Act, mas se um transtorno mental se manifesta como parafilia, pode-se conseguir deter neste aspecto. Ex: crise maníaca de um transtorno bipolar que se manifesta como exibicionismo.
O implante cirúrgico de hormônios para reduzir a libido é sujeito a medidas especiais na Inglaterra, mas medicamentos anti-libido não.
De acordo com o Mental Health Act, indivíduos que sofrem de parafilias podem ser detidos independentemente de outros transtornos mentais (em prisões normais, não hospitais)

Métodos de avaliação de criminosos sexuais – aspectos clínicos

  •  História psiquiátrica completa
  • Exame do estado mental
  • Exame físico
    • Excluir perturnações cerebrais como: epilepsia, tumor, esclerose múltipla, trauma craniano, demencia, desordens cromossômicas, desordens que afetam a função sexual (como o diabetes)
  • Observação (comunidade e hospital):
    • Evidência de excitação sexual e comportamento desviante
    • Atitudes em relação às mulheres
    • Interesse em crianças
    • Acesso a pornografia
    • Agressão e necessidade de controle ou domínio
    • Na comunidade:
      • Depoimentos de testemunhas
      • Depoimentos de amigos e familiares 
Avaliação psicofisiológica

Penile Plethysmography (PPG) ou Falometria



PPG mede o fluxo sanguíneo ao pênis. O método mais comum envolve a medida da circunferência ou do volume do pênis. No caso de agressores sexuais, é tipicamente utilizado para determinar o nível de excitação sexual quando o indivíduo é exposto a conteúdo sexualmente sugestivo (filmes, fotos ou áudio).  Em geral os resultados do PPG são utilizados como parte da avaliação da reabilitação de indivíduos detidos, mas não para determinar se um indivíduo é culpado ou inocente.
Disponível em prisões e hospitais de segurança máxima
Mede o volume ou circunferência do pênis em resposta a imagens sexualmente esitmulantes em setting laboratorial

Vantagens:
• Confronta indivíduos com altos níveis de negação (Kennedy e Grubin, 1992)
• Evidência de resposta
• Evidência da habilidade do paciente de suprimir a resposta
• O clínico pode confrontar o paciente
• Os resultados do PPG podem ser usados como evidência para alto risco de recidivismo na pedofilia
• Útil para monitorar o progresso do paciente

Limitações:
• Não há um equipamento estandardizado
• Falta de metodologia estandardizada
• Não se sabe se o setting laboratorial reflete o setting da vida real
• Potencialmente intrusivo
• Pode-se falsificar respostas
• Faltam dados compreensivos na população em geral
Pode ser mais aplicável a certos tipos de agressores sexuais (parafílicos)
• Muito pouca pesquisa em PG vaginal

Polígrafo
Facilita a descoberta de fantasias e comportamentos sexuais desviantes
Serve para monitorar: libertação de prisioneiros, alta parcial ou aqueles que a quem foram dadas penas suspensas (cumprem medidas na comunidade).
Fotos:

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segunda-feira, 22 de março de 2010

Luto: A vida depois da morte

Reportagem da Revista Época de 21/03/2010, que pode ser lida no original no link abaixo.

A vida depois da morte



Novos estudos mostram que o luto é um processo mais complexo – e muitas vezes mais rápido – do que se imaginava. De onde vem a força do ser humano para superar a dor?


Marcela Buscato



Marilena Fernandes achava que estava começando a redescobrir a vida, nove anos depois da morte do marido, quando um acidente de carro lhe roubou o filho Paulo, de 20 anos. Ela decidiu abrir as cortinas de casa e enchê-la de flores. Não queria que os três outros filhos levassem uma vida amargurada. Desde então – e lá se vão cinco anos – desfila suas alegrias e tristezas todo ano em uma escola de samba. Alice Quadrado transformou o pesar causado pela morte da filha Eliana, aos 25 anos, em vontade de ajudar. Percebeu quanto outros pais que passavam por essa situação se sentiam sozinhos. Fundou a associação Casulo, onde uns apoiam os outros e encontram forças para seguir em frente. “Foi a maneira que encontrei para dar significado a algo de muito ruim”, diz. Marilena e Alice descobriram o que existe além de uma das piores dores a que os seres humanos estão sujeitos: perder um filho.


“Já enterrei amigos, irmãos, mãe. Nada se compara à perda de uma filha”, diz Ana Cristina de Freitas Rocha, de 57 anos, mãe de Tatiana. A jovem de 20 anos morreu em 2005, de uma infecção generalizada diagnosticada tarde demais. “Essa dor é hors-concours”, diz Ana Cristina, usando uma expressão francesa que significa “fora de competição”. É justamente essa avalanche de sentimentos, que atinge quem perde alguém amado, que os cientistas têm tentado revolver. A quem viveu grandes tragédias pessoais, fizeram a mesma pergunta que nos ocorre ao conhecer histórias como as descritas nesta reportagem: como é possível superar a dor que tanto tememos? Nós seríamos capazes?


Há bons motivos para acreditar que sim. “Somos mais fortes do que pensávamos”, afirma o psicólogo americano George Bonanno, pesquisador da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, e referência no estudo de fenômenos ligados à morte. Em seu livro The other side of sadness (O outro lado da tristeza, ainda sem tradução no Brasil), Bonanno compilou uma série de estudos recentes que obrigaram os especialistas a repensar o que se sabe sobre como reagimos à morte. Esses estudos parecem mostrar que a maior parte das pessoas consegue se refazer de uma perda rapidamente, às vezes em questão de semanas. E sugerem que não existe um roteiro de emoções a serem sentidas para que a superação aconteça. No depoimento da página 84, Ana Carolina de Oliveira, a mãe da menina Isabella Nardoni, relata como cada membro da família superou de forma diferente a perda da menina.


Até recentemente, a teoria mais difundida para explicar a reação humana à morte era a dos “cinco estágios do luto”, desenvolvida pela psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross, em 1969. Ela apregoa que, até superar uma perda, as pessoas enlutadas passam por fases sucessivas de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Essa teoria entrou até para a cultura pop: foi tema de um episódio recente do seriado americano Grey’s anatomy e serviu como conteúdo ilustrativo para demonstrar o funcionamento do novo aparelho da Apple, o iPad. Kübler-Ross teve o mérito de chamar a atenção para um assunto até então ignorado, mas seu pioneirismo não foi seguido pela publicação de novos estudos.


Na década de 90, a geração de novatos à qual pertencia Bonanno notou as lacunas no conhecimento sobre o luto e desencadeou uma onda de estudos. “Chegamos a conclusões surpreendentes, simplesmente porque fizemos perguntas básicas que ninguém tinha feito”, diz Bonanno. Percebeu-se que os escassos estudos anteriores eram feitos com voluntários que haviam procurado ajuda de psiquiatras e psicólogos – logo, tinham mais dificuldades que a média para lidar com o luto, o que distorcia os resultados.


O próprio modelo dos cinco estágios do luto é um exemplo. Kübler-Ross tinha desenvolvido sua teoria observando o comportamento de pacientes com doenças terminais, o que não corresponde necessariamente à reação a outros tipos de morte. Mesmo as fases de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação foram definidas a partir da interpretação subjetiva de Kübler-Ross e seus colegas das entrevistas com os pacientes. Até o fim da vida, em 2004, Kübler-Ross disse que sua pesquisa não havia sido bem entendida e que nunca dissera que essas cinco fases se aplicam a todos os casos nem que eram nitidamente separadas. Mas, ante a vontade de entender a inquietação humana diante da morte, sua teoria era irresistivelmente simplificadora.


Os novos estudos, com uma gama mais ampla de pessoas, concluíram que há outras maneiras de lidar com a morte de quem amamos. “Cerca de metade das pessoas lida muito bem com a perda e volta à vida normal em semanas”, diz Bonanno, que analisou uma série de levantamentos para chegar a essas estatísticas de referência. “Outros 25% sofrem por um período maior, que pode durar de alguns meses até um ano. Cerca de 15% desenvolvem graves dificuldades que afetam a convivência social e o desempenho no trabalho.”


A morte de 3 mil pessoas nos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, teve um papel inesperado no novo entendimento da ciência sobre a morte. O trauma redespertou o interesse da ciência pelo tema e impulsionou uma série de estudos que acompanharam a recuperação dos moradores de Nova York. Os resultados foram surpreendentes. Apenas seis meses após a tragédia, 65% das pessoas entrevistadas mostravam-se emocionalmente equilibradas. Essa taxa era alta até entre aquelas que perderam um amigo ou um parente na tragédia: 54% não tiveram a saúde emocional abalada, 35% já tinham se recuperado depois de desenvolver algum tipo de trauma e apenas 11% ainda enfrentavam dificuldades para se recuperar. As proporções, semelhantes àquelas encontradas por Bonanno e seus colegas em seus primeiros estudos, ajudaram a consolidar o nome que se deu ao outro lado da tristeza: resiliência.


Os atentados terroristas de 2001 geraram uma
série de estudos sobre a resiliência diante da morte


Os rostos que ilustram esta reportagem fazem parte dessa maioria à qual os especialistas chamam de “resilientes”. O termo, emprestado da física, traduz em sentido figurado o que ocorre com quem supera uma perda: é a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original depois de sofrer um impacto. Isso não significa que não houve sofrimento ou que foi fácil. Em comum, os resilientes têm a decisão de continuar a viver – conscientemente, como Ana Cristina, ou de forma inconsciente, como Maria de Fátima Ferreira, que enfrentou um câncer de mama na mesma época da morte do filho Francesco, de 21 anos, em 2004. “As pessoas achavam que eu não ia aguentar. Eu achava que ia morrer junto”, diz. Mas ela venceu. Há quatro meses foi declarada curada pelos médicos.

Os cientistas acreditam que somos capazes de reações como a de Maria de Fátima – inexplicáveis até para ela – porque já nascemos dotados dessa capacidade de superação. Nossos genes e circuitos cerebrais teriam sido programados, ao longo de milhares de anos de evolução, para contornar o abalo provocado pela morte de pessoas com quem temos fortes vínculos emocionais. A depressão, descrita por Maria de Fátima e por outros milhares de pessoas que viveram uma tragédia, faria parte dessa estratégia. A tristeza causa uma sensação de torpor: o mundo parece estar em câmera lenta; perdem-se a fome, o desejo sexual e a vontade de viver. Essa prostração nos impediria de tomar decisões e atitudes que coloquem a própria sobrevivência em risco durante esse período. Hoje, essa função da tristeza pode parecer banal. Mas, quando nossos antepassados eram nômades, até 10 mil anos atrás, a sensação de torpor era uma questão de sobrevivência. Podia impedir que alguém entrasse por impulso em uma disputa por comida e apenas no decorrer dela se lembrasse de que seu parceiro não estaria por perto para lhe dar apoio. O período de depressão corresponderia ao período de atualização de nossos circuitos cerebrais a essa nova realidade.


A prostração soa como uma estratégia ruim de sobrevivência para nossos antepassados, às voltas com a luta diária pela vida. Mas, se ela for contrabalançada por oscilações entre depressão e otimismo, passa a fazer sentido. Quem já enfrentou a morte de alguém próximo sabe que o luto não é tristeza 24 horas por dia, sete dias por semana. Há dias em que mergulhamos no mais profundo pesar. Em outros, a vida parece ter voltado ao normal e há até momentos de genuína alegria. A teoria dos cinco estágios do luto, mostram os estudos recentes, é insatisfatória, definindo como lineares fases que são, na verdade, cíclicas.


Se o luto não é necessariamente tão sofrido quanto se imaginava, se a maioria consegue superar bem uma perda, por que algumas pessoas enfrentam tanta dificuldade? Os 15% estimados por Bonanno passam anos vivendo como nos primeiros e mais difíceis momentos do luto. Essas pessoas não conseguem retomar a vida. Vivem para a dor, em uma espécie de luto crônico, chamado pelos especialistas de “luto patológico” ou “luto complicado”. Além de prejudicar a qualidade de vida, ele aumenta os riscos de desenvolver desordens como depressão grave e transtornos de ansiedade. Um estudo da Universidade Yale, nos Estados Unidos, mostrou que esses enlutados crônicos correm um risco sete vezes maior de se suicidar.


A psicóloga americana Mary-Frances O’Connor, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, deu um passo importante na investigação das causas do luto complicado. Ela pediu a mulheres que haviam perdido a mãe ou a irmã por câncer de mama que fizessem um exame de ressonância magnética enquanto observavam uma fotografia do parente que haviam perdido. Áreas do cérebro associadas à sensação de dor eram ativadas tanto nas voluntárias resilientes quanto nas que tinham sintomas de luto prolongado. Mas nas mulheres que não conseguiam superar o luto também era ativada uma área do cérebro ligada ao sistema de recompensa, o responsável pela sensação de prazer, chamada “núcleo accumbens”. “Isso significa que as pessoas resilientes parecem processar a perda de uma maneira rápida e eficaz”, afirma Mary-Frances.



Os pesquisadores acreditam que os genes que regulam nossas respostas ao estresse ajudam a determinar se uma pessoa terá uma personalidade mais ou menos sensível a situações que geram ansiedade. Um desses genes, conhecido por 5HTT, está associado à fabricação da molécula que bombeia para os neurônios a serotonina – substância que transmite as informações entre as células do cérebro. Há duas versões desse gene. Uma produz mais moléculas transportadoras de serotonina, o que estaria ligado a uma personalidade mais estável e equilibrada. A outra versão aumentaria a excitabilidade da amígdala, uma área do cérebro associada ao medo e às emoções. “Mais de 50 estudos já avaliaram esse gene e 70% deles mostraram que uma das versões torna a pessoa mais sensível a situações estressantes”, afirma a psicóloga Terrie Moffitt, pesquisadora da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e autora de alguns desses estudos.


O 5HTT, sozinho, não explicaria tudo. Há no mínimo dezenas de outras variações genéticas que contribuem para nosso limiar de ansiedade. E os fatores ambientais são determinantes. “A reação de uma pessoa à morte sempre depende do contexto”, afirma a psicóloga Cristina Moura, pesquisadora da Universidade de Brasília. Por exemplo, a distância física da pessoa morta ou a surpresa por uma morte repentina e inesperada.


O luto complicado pode vir a ser incluído pela Associação Americana de Psiquiatria na lista de doenças reconhecidas pela entidade, em uma revisão a ser publicada em 2013. O principal obstáculo é a dificuldade de distingui-lo do luto “comum”. Em ambos, há falta de energia, crises de choro, perda de apetite, tendência ao isolamento. A diferença é que nos casos patológicos esses sintomas vão se agravando. “Esse reconhecimento é importante porque as pessoas precisam entender que o luto prolongado é um problema específico e precisa de tratamento especializado”, afirma a epidemiologista Holly Prigerson, coordenadora da equipe do Dana-Faber Cancer Institute, que está estudando uma forma de definir claramente o que é o luto prolongado.


É preciso terapia para lidar com o luto? Estudos
mostram que ela pode até ser perigosa em alguns casos


Holly toca em um ponto ainda delicado para a ciência do luto: até que ponto uma pessoa enlutada precisa de ajuda psicológica para seguir adiante? A teoria dos cinco estágios do luto, que influenciou e ainda influencia especialistas, levou pessoas que estavam reagindo de maneira natural a ser vistas como problemáticas – e compelidas por parentes e amigos a buscar tratamento psicológico. O assunto é polêmico, mas alguns pesquisadores acreditam que há casos em que a terapia pode fazer mais mal que bem. Alguns estudos mostraram que pacientes que haviam lidado bem com o luto e começaram uma terapia passaram a acreditar ser insensíveis – afinal, não sofriam como as pessoas achavam que eles deveriam. Outros começaram a se questionar se realmente queriam bem a quem morreu. Todos se sentiam na obrigação de sofrer e se empenharam na tarefa. Com base nesses estudos, o psicólogo Scott Lilienfeld, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, incluiu a terapia para casos de luto em uma lista de tratamentos potencialmente perigosos. “Se há a possibilidade de a terapia suscitar efeitos negativos, é melhor implementá-la com precaução”, escreve Lilienfeld em seu artigo na publicação científica Perspectives on Psychological Science. A metodologia das pesquisas que levaram Lilienfeld a essa conclusão é discutível. Muitas não especificam qual linha de terapia foi foco do estudo nem quais eram os parâmetros para estabelecer se o paciente melhorou ou piorou.


Como em todo tratamento psicológico, o resultado depende da disposição do paciente. “Nenhuma terapia é eficaz se a pessoa acredita que não precisa de ajuda e não coopera. Nem todo mundo precisa de ajuda”, diz a psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da Universidade de São Paulo.


Também existem estudos em favor da terapia. O psicólogo Julio Peres é um dos poucos no Brasil a estudar seus efeitos sobre o cérebro de pessoas que passaram por situações traumáticas. Ao submeter 16 pacientes a tomografias, após oito sessões de terapia, Peres percebeu que a atividade cerebral, enquanto eles recordavam a experiência, havia aumentado no córtex pré-frontal e diminuído na amígdala. As conclusões são significativas porque o primeiro é a área do cérebro encarregada do raciocínio lógico e da categorização das experiências e a segunda está relacionada a nossas respostas emocionais. “As terapias de fala, como a cognitiva e a psicanalítica, obrigam a pessoa a organizar suas experiências”, afirma Peres. “É como puxar a ponta de um novelo de lã.” Falar da dor – e estudar como reagimos a ela – ajuda a nos tornar mais tolerantes à presença da morte a nossa volta.

O que os cientistas descobriram sobre o luto


Pesquisas recentes analisaram à luz da ciência o sofrimento causado pela morte de alguém querido. E revelaram imprecisões nas teorias sobre a dor aceitas durante décadas



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Textos no scribd


Estive meio desaparecida no fim de semana, mas continuo a colocar textos no SCRIBD sobre o modelo de prevenção ADR ao HIV em utilizadores de drogas(Aconselhamento, Diagnóstico e Referenciação). Lembrando que o ADR envolve a utilização de testes rápidos ao vírus (resultados em 5 minutos) e aconselhamento para alteração de hábitos comportamentais, sendo recomendado pela OMS (WHO).

Os textos podem ser acessados na minha página no scribd aqui.

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quinta-feira, 18 de março de 2010

Schadenfreude: quando sua desgraça é minha felicidade

Research Blogging Awards 2010 Finalist
Schadenfreude é uma palavra derivada do alemão, Schaden (dano) e Freude (alegria), utilizada para designar o prazer obtido dos problemas dos outros. É a palavra que dá significado ao sentimento descrito no dito popular "pimenta nos olhos dos outros é refresco".

Schadenfreude pode ser observado desde as risadas causadas pelo palhaço de circo que escorrega na casca de banana ao prazer de algumas pessoas com os problemas de Britney Spears dois anos atrás (cujas fotos decadentes estiveram esparramadas por todos os tablóides em um grande exempo da palavra), ao prazer com o divórcio da amiga que parecia ter o casamento perfeito. Todos são exemplos deste sentimento nunca comentado mas generalizado na população.

Desde os tempos bíblicos há menções de uma emoção semelhante na descrição ao schadenfreude: "Quando cair o teu inimigo, não te alegres, nem se regozije o teu coração quando ele tropeçar; Para que, vendo-o o Senhor, seja isso mau aos seus olhos, e desvie dele a sua ira" (Provérbios 24:17-18). Na Grécia clássica, Aristóteles usou o termo epikhairekakia na obra Ética a Nicômaco, que quer dizer "alguém que sente prazer com o infortúnio de outro"

Quando o conceito passou a ser incorporado no linguajar europeu, apenas sua menção causava horrores. Mesmo o lúgubre filósofo alemão do século 19 Arthur Schopenhauer considerava este prazer terrível demais para ser contemplado e, embora ateu, Shopenhauer dizia que schadenfreude era obra do diabo. Teólogos protestantes e católicos posteriormente denunciaram schadenfreude como um grave pecado, embora poucos estejam livre dele.

Homer imagina a desgraça de Flanders com um sorriso nos lábios no episódio "When Flanders Fails" (Quando Flanders Falha) da terceira temporada do desenho americano Os Simpsons
Schadenfreude atrai porque é uma vingança desempenhada sem qualquer esforço por parte do observador. A sensação é parecida com a conquista de um inimigo. E é justamente por esta razão que Friedrich Nietzsche argumentava que o sentimento é de fato perigoso. O prazer sentido é ilegítimo, e desta forma culposo; o indivívuo nada fez para o receber. Uma vitória recebida sem qualquer competição não pode ser nada mais do que "vendeta imaginária", apenas uma satisfação virtual. Nietzsche chegou até mesmo a hipotetizar que sentimentos de inferioridade intensificam o schadenfreude.

O famoso filósofo alemao estava no caminho certo. R.H. Smith, um psicólogo da Universidade de Kentucky nos EUA, estudioso da inveja em psicologia social, escreveu diversos artigos que trazem evidências do que Nietzsche teorizou. Smith realizou um experimento no qual estudava reações a histórias aparentemente verdadeiras de dois estudantes de medicina que arruinaram suas carreiras ao roubar drogas do laboratório da universidade. Um deles era rico, bonito e bom aluno. O outro era o oposto. Os voluntários no experimento de Smith sentiram mais alegria ao ver o infortúnio do aluno que apresentava maior sucesso. Os achados de Leach et al., publicados em 2003 no Journal of Personality and Social Psychology reforçam estes achados. Os pesquisadores deste estudo, analisaram o sentimento de prazer com a perda alemã no futebol.

Os psicólogos que investigam a área baseiam seu trabalho no que é conhecido como Social Comparison Theory (Teoria da Comparação Social). O campo foi concebido na década de 1950 por Leon Festinger e é baseado na premissa de que os humanos avaliam-se não tanto por objetivos estandardizados mas por comparação ao outros em seu redor. Uma piadinha americana exemplifica isso:
Dois homens estão a caminhar pela floresta quando encontram um urso. O primeiro abre sua mochila e pega seus tênis/sapatilhas. "Porque você vai vestir tênis/sapatilhas?'', pergunta o segundo. "É impossível correr mais que um urso". "Eu não tenho que correr mais que o urso", responde o homem, "só tenho que correr mais que você".


O jogador/futebolista brasileiro Ronaldo, vítima de Schadenfreude ao ter seu nome associado a uma orgia com travestis


Segundo esta teoria, nossos sucessos e insucessos na verdade são assim concebidos com base no que as pessoas ao nosso redor tem ou fazem - fazemos comparações sociais. Quando as pessoas à nossa volta sofrem perdas, isso faz com que nosso desempenho melhore.

Aaron Ben-Ze'ev, professor de filosofia na Universidade de Haifa, em Israel, teoriza que as pessoas que invejamos mais são as mais próximas em nosso círculo social. Em entrevista ao New York Times, ele disse: "Você inveja mais um colega que ganha mil dólares a mais por ano do que um presidente de empresa, que ganha milhões de dólares a mais". Ele continua: "Também invejamos mais pessoas famosas, elas são símbolos para nós".

No campo dos estudos de imagem, Takahashi et al, estudaram a neurologia deste sentimento proibido. Os autores utilizaram fMRI (Ressonância Magnética Funcional) para avaliar a ativação cerebral aos sentimentos de inveja e schadenfreude em 19 voluntários. Os resultados foram publicados na revista Science em 2009:
No experimento de inveja, os voluntários deveriam visualizar cenários nos quais eram protagonistas. No primeiro cenário, um estudante A foi bem nas provas da faculdade, mas o protagonista não foi. A é um atleta talentoso (ao contrário do protagonista), é popular com as garotas e tem uma bela e inteligente namorada (ao contrário do protagonista). A foi bem numa entrevista de emprego e está a se sair muito bem no trabalho. Seu salário é bom e ele vive com estilo (ao contrário do protagonista).

No experimento de schadenfreude, o protagonista sai-se bem melhor do que A. As análises envolveram comparação da ativação em diferentes regiões cerebrais aos cenários de inveja, schadenfreude e neutro e os voluntários também graduaram seus próprios sentimentos de inveja e regozijo em cada cenário. Os resultados mostraram que o cenário de inveja levou a maior ativação do córtex cingulado anterior (CCA) e este achado foi correlacionado a maiores sentimentos relatados de inveja. O CCA é relacionado a detecção de erros ou conflitos - quando a resposta esperada não é a que acontece. O CCA também é ativado na dor, dor empática ou dor associada a exclusão social. A ativação do CCA só aconteceu quando o voluntário conseguia se relacionar com o objeto de sua inveja. Se o voluntário imaginasse que a pessoa alvo é irrelevante para comparação, os resultados mostravam indiferença (o que corrobora a hipótese de Ben-Ze'ev).


Em Portugal o apresentador de TV Carlos Cruz teve seu nome arrastado na lama ao ser associado a um escândalo de pedofilia no Processo Casa Pia. Vítima de schadenfreude, a última reportagem que li dele foi a dizer que agora sai de férias em um trailer para parques de campismo, ao invés de ficar em hotéis 5 estrelas.







Os cenários de schadenfreude causaram ativação no estriado ventral e esta ativação foi correlacionada a sentimentos auto-referidos de schadenfreude. Da mesma forma que no cenário de inveja, a correlação só foi positiva quando o exemplo alvo era relevante para comparação pessoal. A ativação do estriado ventral é tipicamente associada a estímulo de recompensa e os autores interpretaram sua ativação com sentimentos de prazer.
Os autores concluem com a proposta de um mecanismo neurológico para inveja e schadenfreude, que podem ser mediados de diversas formas. Uma delas é que a pessoa em questão, alvo dos sentimentos deve ser importante para um indivíduo. O quanto você empatiza com este indivíduo alvo determina a intensidade dos sentimentos de inveja e schadenfreude.

Fulford (2003) em sua coluna no National Post acredita que ocasionalmente o schadenfreude pode ser justificado e prazeroso. O autor descreve a história de Peter Gay, que relata em seu livro My German Question seu episódio de prazer com a desgraça alheia: Gay era um adolescente judeu perseguido na alemanha nazista. Ele se lembra do prazer que sentiu ao ver os atletas alemães perdendo medalhas para aqueles que tinham certeza que eram seus inferiores (especialmente para um negro americano no atletismo). Enquanto os fãs alemães agoniavam, Gay deliciava-se. Schadenfreude, segundo Gay, "pode ser um dos grandes prazeres da vida."

Referências:

ResearchBlogging.org
Fulford, R. (2003). Schadenfreude: one of life's guilty pleasures. The National Post.

Leach CW, Spears R, Branscombe NR, & Doosje B (2003). Malicious pleasure: schadenfreude at the suffering of another group. Journal of personality and social psychology, 84 (5), 932-43 PMID: 12757139

Smith RH, Powell CAJ, Combs DJY, Schurtz DR. (2009). Exploring the When and Why of Schadenfreude. Social and Personality Psychology Compass 3/4 (2009): 530–546, 10.1111/j.1751-9004.2009.00181.x

ST. Johns W. (2002). Sorrow So Sweet: A Guilty Pleasure In Another's Woe. The New York Times, August 24, 2002.

Takahashi, H., Kato, M., Matsuura, M., Mobbs, D., Suhara, T., & Okubo, Y. (2009). When Your Gain Is My Pain and Your Pain Is My Gain: Neural Correlates of Envy and Schadenfreude Science, 323 (5916), 937-939 DOI: 10.1126/science.1165604

Young J. (2009). Neuroscience of Envy and Schadenfreude. Pure Pedantry (blog).

Fotos:
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quarta-feira, 17 de março de 2010

Sadismo médico: nurture vs. nature

Research Blogging Awards 2010 Finalist
Dias atrás li o post "O abandono que gera dependência" de Thiago Moraes, estudante de medicina e autor do blog Sanidade Insana. Nele, Thiago relata seu espanto diante de uma situação muito conhecida dos médicos e pouco debatida na população: os maus-tratos infringidos por médicos e estudantes de forma consciente à população com transtornos conversivos/dissociativos.

O tema abordado por Thiago, estudante que está a testemunhar os abusos cometidos merece ser bem dissecado e debatido para trazer à luz esta questão.

É de certa forma parte da formação médica aprender a objetificar os pacientes, para que a prática se torne menos intoxicante ao médico, que tem que respirar doenças e sofrimento no seu dia a dia. Muitos poucos estudantes entendem esta questão e buscam o curso de Medicina por conta de glórias (passadas) associadas à profissão. Há inúmeras gratificações psicológicas inerentes à profissão médica: A medicina e uma área fascinante, de capital importância para a sociedade e, como tal, uma carreira desejada e idealizada pelos jovens. O grau de idealização pode gerar altas expectativas que, não correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações significativas, com repercussões importantes na saúde dos estudantes. Além disso há o caráter altamente ansiogênico do exercício profissional, no qual tratar do adoecer do outro é estar em contato íntimo com este. Algumas características inerentes à tarefa médica definem, isoladamente ou em seu conjunto, um ambiente profissional cujo colorido básico é formado pelos intensos estímulos emocionais que acompanham o adoecer (Nogueira-Martins, 1991): O contato íntimo e frequente com a dor e o sofrimento; lidar com pacientes difíceis: queixosos, rebeldes e não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, auto-destrutivos, cronicamente deprimidos.

Não é de se estranhar a necessidade, portanto, de objetificar o doente, afastá-lo de nossos sentimentos para que possamos desempenhar a atividade necessária. Exemplos particularmente vívidos desta objetificação podem ser encontrados em qualquer Centro Cirúrgico hospitalar, no qual vemos cirurgiões a desempenhar sua atividade (como a remoção de um estômago, por exemplo) enquanto contam piadas, discutem o menu do dia do restaurante do hospital ou contam de trivialidades.
O que quero que o leitor entenda até aqui é a real necessidade deste afastamento, de forma a impedir um super-envolvimento do profissional médico com o quadro do paciente, que pode afastá-lo da objetividade necessária para propor, por exemplo, um procedimento diagnóstico particularmente doloroso ou prevenir psicologicamente o profissional de chegar a um diagnóstico ruim, mas verdadeiro (por exemplo, câncer terminal).

Há uma grande diferença entre este afastamento dito "natural" e desejado do médico do sadismo descrito por Thiago em seu post, que também testemunhei quando aluna. E o pior, o alvo deste sadismo é uma população por si só vulnerável (pacientes psiquiátricos) que tem a dor causada pelo médico como sua salvação:

A história clássica do sadismo é a seguinte:

São quatro horas da manhã e os médicos de plantão estão cansados e com fome. Geralmente a esta hora há poucas opções de lanche no hospital. Chega uma nova ficha na sala de plantonistas, trazida pelo porteiro/enfermeiro/profissional de triagem. Diversas vezes ouvi o comentário "se o fulano não estiver numa maca e em estado grave, vou ficar zangado", já a estabelecer o humor em que a consulta se desempenhará.
O fulano em questão não está numa maca: Quando o médico senta-se para ouvir sua queixa, o paciente (homem ou mulher, geralmente na casa dos 30 a 40 anos) queixa-se de uma dor nas costas/abdome/pernas.... Quando questiona sobre quando a dor se iniciou, o médico (que espera uma resposta rápida que lhe diga que a dor é intensa e súbita, tendo iniciado às 3 da manhã) ouve espantado que a dor iniciou há 10 anos, não sendo tão intensa, vai e volta e piora à noite. O paciente em questão procura o pronto-socorro porque naquela noite não conseguiu dormir pela dor, que embora não seja intensa, é persistente.
Aqui o médico perde a paciência. Muitas vezes a consulta torna-se um bocado agressiva, com respostas ríspidas por conta do profissional. A terapêutica administrada a este paciente é uma referência para marcar uma consulta com ortopedista/clínico geral, etc.. e, para se ter certeza de que este paciente nunca mais cometa o pecado de acordar o plantonista com uma queixa tão boba, é lhe administrada uma injeção de dipirona ou água destilada intra-muscular (o primeiro é um analgésico simples), cuja única função é causar o máximo de dor nesta forma de administração.

Um leitor mais distraído pode pensar que o médico estava certo na impaciência em tratar o doente em questão (a parte do fato de ter administrado um medicamento/placebo apenas para causar dor). Afinal milhões são gastos todos os anos em consultas desnecessárias de pronto-socorro que poderiam facilmente ser atendidas em programa de saúde da família, centros de tratamento ou ambulatórios. Além disso, longe de o exemplo acima ser raro, ele ocorre duas, três ou mas vezes por plantão, lentificando a fila de espera de quem realmente precisa de tratamento de urgência.

Sim, tudo isso é verdade. Mas também é verdade que longe de ser intencional, o paciente em questão apresenta sofrimento genuíno e busca auxílio àquela hora por ser compelido pela sua psicopatia. Aqui estamos falando de transtornos conversivos/dissociativos.

A lista de transtornos conversivos/dissociativos é grande e não vou detalhá-la neste post, podendo ser conferida numa rápida busca pelo google. Estes transtornos, conhecidos antigamente como histeria, tendem a apresentar-se como dor ou sintoma físico, daí a procura pelo médico. Na época de Freud, as histéricas clássicas eram aquelas que quando confrontadas com situações de estresse emocional, caiam ao chão desmaiadas e eram abanadas com leques. Este comportamento naquela época era aceitável. Entretanto a sociedade mudou e o comportamento histérico de desmaios passou a ser visto com maus olhos e, como tantos outros sintomas, o comportamento evoluiu para o que hoje se aceita: dor, sofrimento, pânico, etc...

Os pacientes que chegam ao pronto-socorro pela madrugada, longe de serem vândalos do sono dos médicos, apresentam sofrimento psíquico genuíno (mesmo que inconsciente) que quando intenso, passa a manifestar-se pela dor. A escolha da hora de buscar auxílio médico também não é randômica: estes pacientes apresentam um vasto leque de sintomas depressivos (com insônia sendo um dos proeminentes), o que faz com que eles não durmam ou acordem de madrugada, angustiados, desamparados e procurem o hospital.

Mesmo o mal causado pelo médico sádico na verdade é entendido como um bem, já que na maioria das vezes, mesmo com uma simples injeção de água destilada, a dor passa: estes pacientes são por natureza extremamente sugestionáveis e a injeção dolorida para punir a carne, de certa forma alivia o espírito.

Isto entretanto não justifica o comportamento dos médicos e estudantes (que aprendem na barra do jaleco/bata as más-práticas) cuja única intenção é causar DOR.

É horrível pensar que um profissional que teoricamente deveria entender dor, miséria e sofrimento, disponha-se conscientemente a provocar mais dor em seus pacientes, contrário a tudo que é aprendido no currículo e ao juramento solene prestado no dia da formatura.

Aqui vai um pequeno exerto do juramento de Hipócrates:

(...) Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. (...) Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.

E de onde vem este comportamento sádico?

O próprio exercício da profissão médica parece ser "um veneno psicológico" para seus profissionais: Uma alta incidência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais tem sido apontados na literatura. Muitas das características psicodinâmicas que podem conduzir as pessoas para a carreira médica também as predispõem a desordens emocionais. Algumas características incluem compulsividade, rigidez, controle sobre as emoções, retardo de gratificações e formação de fantasias irrealistas sobre o futuro. É aqui que falo de NATURE (natureza). Um estudo de doutorado/doutoramento de uma colega psiquiatra observou que os traços obsessivos de personalidade são muito mais comuns nos estudantes de medicina do que na população geral. A tese em questão não entra no mérito de causa e efeito: pode ser que o curso de medicina, com seu obsessivo limpar, suturar, observar se não se esqueceu nada na cavidade abdominal do paciente que foi operado, reforce características não tão patológicas anteriores, ou crie o surgimento de traços obsessivos. Pode ser (na minha opinião mais provável) que as demandas por longas horas de estudo e notas suficientemente altas para entrar no curso de medicina sejam apenas satisfeitas por personalidades suficientemente obsessivas e o processo seletivo na verdade separe indivíduos com estes traços para o exercício da profissão. E como se sabe, obsessão tem a ver com CONTROLE. Os pacientes que apresentam-se desta forma às quatro da manhã fogem do padrão estabelecido "normal" para aquele contexto, ambiente e horário. São fatores que fogem ao controle do médico, que age com agressividade para exprimir sua frustração.

Por NURTURE, entende-se educação, nutrição de comportamentos adequados ou inadequados. Diversos estudos exploram o currículo médico, quais disciplinas são importantes e como educar melhor os alunos. Entretanto todos estes observam o currículo formal. Um estudo recente,  de Wear e Skillicorn, publicado no Journal of the Association of American Medical Colleges observou um outro tipo de educação: O currículo informal e o currículo escondido.

O estudo em questão focou-se na área da psiquiatria (internato e residência) mas acredito que seus achados ou hipóteses podem ser generalizados para toda parte clínica do curso de medicina.

O currículo informal é administrado junto ou após a educação teórica, mas ainda pouco é conhecido sobre o assunto. Durante a parte clínica do curso de medicina (terceiro ou quarto anos em diante), é que os alunos são mais confrontados com o currículo informal. O estudo analisou as percepções dos alunos sobre o currículo formal (aulas estruturadas e conhecimento teórico) e o currículo informal. O currículo informal foi definido como o processo pelo qual o conhecimento e habilidades do aluno são situadas em um contexto de trabalho diário (como plantões, corrida de leito, etc..). O currículo escondido foi definido como mensagens subliminares e ideologias passadas dentro dos currículos formal e informal. Por modelos, entende-se residentes e médicos que estiveram em contato com os estudantes durante o experimento.

Em geral, os estudantes não tiveram dificuldades em diferenciar modelos negativos de positivos, mas o currículo informal foi altamente valorizado como forma de aprendizagem. Além disso, eles identificaram que os elementos dos currículos informal e escondido foram expressados primariamente como valores demonstrados pelos modelos enquanto atendiam seus pacientes (como tempo despendido e conselhos dados "da experiência" ao invés de seguir os livros).

Dr. Cox reprime J.D. (aluno) na sitcom americana Scrubs, que traz bons exemplos do que é educação médica informal e escondida.

O estudo mostra a importância de bons modelos, bons profissionais médicos na formação do estudante de medicina/psiquiatria. Membros de uma faculdade de medicina deveriam ter ciência do quanto influenciam seus alunos no seu contato com os pacientes nos corredores do hospital, nas salas de atendimento, etc. "Monkey sees, monkey does", como dizem os ingleses.

Médicos que engajam constantemente em comportamentos rudes e sádicos não deveriam trabalhar em contato com novos profissionais, para prevenir uma "contaminação" da nova geração de médicos pelos antigos valores. Em um mundo ideal, professores médicos e plantonistas em contato direto com alunos, verdes ainda na personalidade e modelo médico seriam completamente dedicados a este ensino.

Sim, tudo isso seria ideal....
A realidade portanto, é outra. E é hora de o paciente reconhecer seus direitos e reclamar se foi mau atendido ou agredido da forma como exemplifiquei. Todo hospital do SUS possui um livro de reclamações. Em Portugal, é obrigatório apresentar-se o livro amarelo quando solicitado.
Só com a reclamação por escrito dos diretamente afetados e com reprimendas aos médicos envolvidos pode-se tentar diminuir a epidemia de comportamentos sádicos nos pronto-socorros do país e prevenir que a nova geração de médicos aprenda as más-práticas e o desrespeito ao próximo, tão comuns nos pronto-socorros do SUS.

Referências:

ResearchBlogging.org
Andrade, MPM. As defesas psíquicas dos estudantes de medicina / Defense mechanism of medical students. Säo Paulo; s.n; 2000. 97 p. tab.

Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro\São Paulo: Livraria Atheneu, 1988.

Botega, NJ e Nogueira-Martins, LA. Hipócrates doente: os dramas da Psicologia Médica, 1997.

Cassorla, RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Revista ABP-APAL, 1994.

Nogueira-Martins, LA. Saúde mental dos profissionais de saúde. In BOTEGA, M. J. (org.). Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e Emergência. Porto Alegre, Artmed Ed., 2002.

Wear, D., & Skillicorn, J. (2009). Hidden in Plain Sight: The Formal, Informal, and Hidden Curricula of a Psychiatry Clerkship Academic Medicine, 84 (4), 451-458 DOI: 10.1097/ACM.0b013e31819a80b7

Zimerman, DE. A formação psicológica do médico. In. MELLO FILHO, J. Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

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