sábado, 17 de julho de 2010

A Cocaína: de tônico cerebral a destruidora de sociedades - Parte 2

Este post continua a história do uso e dependência de cocaína

A Era dos Medicamentos Patenteados


Numa época de conhecimentos incompletos, na qual a farmacologia ainda engatinhava e figuras de autoridade exaltavam os mais diversos psicofármacos, desconhecendo ou desacreditando os efeitos adversos, um lucrativo comércio de tónicos e soluções que continham as mais diversas drogas despontou no final do século 19. Fabricantes de medicamentos patenteados, tónicos e refrescos produziram uma pletora de produtos que continham cocaína, desde cremes e pós nasais a supositórios. Estes medicamentos alegavam curar uma lista de doenças, incluindo alcoolismo, asma, gripes, eczemas, neuralgias, dependência de morfina e doenças venéreas.

Em 1863 Angelo Mariani, um químico da Córsega, patenteou o Vin Mariani, um vinho de coca. A propaganda do produto incluía testemunhos de Thomas Edison, Robert Louis Stevenson, Jules Verne e o Papa Leão XIII. A propaganda médica afirmava que apenas aqueles de pouca força de vontade tornavam-se usuários regulares da droga. A propaganda de uma substância conhecida como Metcalf’s Wine of Coca afirmava: “Oradores, cantores e atores acham que o vinho de coca é um ótimo tônico para as cordas vocais. Atletas, corredores e jogadores de Baseball viram por experiência prática que o uso regular de coca, tanto antes quanto após qualquer prova de esforço, irá aumentar a energia de todos os movimentos e prevenir fatiga. Pessoas idosas viram que é um afrodisíaco superior a qualquer outra droga.” Entretanto, o produto que se tornou mais famoso mundialmente foi a Coca-Cola. Assim com outros produtos da época, a Coca-Cola originalmente continha cocaína e era vendida como um “tônico cerebral e intelectual” e eventualmente passou a ser vendida apenas como refresco. Por volta de 1903, o fabricante abandonou o uso de xarope de coca e, até os dias de hoje, o refrigerante utiliza apenas folhas de coca nas quais a cocaína foi retirada através do processo de acetilação (Bayer, 2000).

Os problemas começaram a tornar-se públicos – overdoses, psicoses por cocaína, graves dependências químicas – e a opinão pública começou a mudar. Fleischl, que esteve entre os primeiros a manifestar sintomas do abuso de cocaína, infelizmente não foi o último. Enquanto que mortes por overdose resultante de auto-administração eram raras, overdoses por doses administradas pelos médicos tornaram-se frequentes. O relato do caso de Annie Meyers foi influencial na mudança perante a droga: “Eu deliberadamente peguei um par de alicates e soltei um dente que tinha uma obturação de ouro. Então, extraí o dente e o esmaguei, levando o ouro à loja de penhor mais próxima (o sangue corria pela minha face e encharcava minhas roupas) onde o vendi por 80 centavos.”

No início do século 20, alimentada pelos abusos na propaganda dos medicamentos patenteados, pelos diversos relatos de efeitos adversos com a cocaína e por uma campanha de estigmatização social da droga, a opinião pública começa a mudar. De 1900 a 1920, uma série de reportagens na mídia americana associava a cocaína a crimes hediondos cometidos por negros. A cocaína (e cannabis) passou a ser estigmatizada nos EUA por sua associação a trabalhadores pobres de minorias étnicas. Eles cheiravam cocaína porque não podiam comprar seringas, o que os distinguia no uso da droga dos médicos, advogados e classes média e alta, que injetavam a droga. A cocaína passou a ser acusada de ser um “potente incentivo para que negros humildes em todo o país cometam crimes anormais”.

Todos estes fatos, no início do século passado, lançam bases para uma reforma legislativa nos EUA, que culminou com a criminalização da substância. O Harrison Narcotics Act de 1914 (melhor descrito nos posts relativos à heroína) restringiu significativamente a disponibilidade da coca e cocaína, proibindo o uso da droga em medicamentos patenteados. A combinação de propaganda adversa da substância e de legislação específica removeram a áurea de respeitabilidade da droga. Com a proibição, a droga tornou-se cara, sendo disponível apenas para uma minoria afluente. No período que segue a criminalização, até a Segunda Guerra Mundial, o número de usuários nos EUA é difícil de ser estabelecido. No início da década de 30, com a disponibilidade de anfetaminas e o alto custo da cocaína, sua popularidade tornou-se ainda mais reduzida. Até o final da década de 50, o comércio ilegal de cocaína praticamente não compensava.

No Brasil a cocaína também era legalmente comercializada na época, como parte integrante de medicamentos ou na sua forma pura. Sob influência das questões norte-americanas a sociedade brasileira passou a ver o uso de cocaína com preocupação. Seguindo as tendências mundiais, em 1921 o Decreto-Lei Federal no 4.292 de 06 de Julho de 1921 restringiu o uso de cocaína no Brasil.

Apenas no final da década de 60 e início dos anos 70 o interesse em cocaína voltou a renascer. Sociedades afluentes, que inicialmente buscavam auto-realização pessoal em pouco tempo passaram a buscas de prazer hedonísticas, alimentaram as vendas internacionais de cocaína. A droga inundou nichos do mercado norte-americano, criados por anfetaminas, heroína e maconha, produtos da cultura da droga dos anos 60. O grande número de norte-americanos que consumia maconha e alucinógenos resultou em diminuição do temor das restrições legais. A cocaína reaparece como droga da elite (estrelas do cinema e do rock), que publicitaram largamente sua nova droga “gourmet”. Esta apologia social da droga levou ao ressurgimento do consumo de cocaína nos EUA. O movimento yuppie, uma ideologia ligada ao consumismo e à rápida ascenção social, utilizou a cocaína para diminuir a fatiga e aumentar a capacidade intelectual. Colombianos de Medelín surgiram como intermediários entre esta demanda e fazendeiros peruanos e bolivianos, refinando a droga e a vendendo principalmente através de imigrantes colombianos em Miami e Nova Iorque. No final da década de 1980 e início dos anos 90, seguindo a tendência americana, o aumento do consumo de cocaína é detectado na população brasileira, quadruplicando de 1987 a 1997.

Com o aumento da repressão no final da década de 80, durante o governo de Ronald Regan e sua “Guerra às drogas”, novos mercados são desbravados com o crack. No início de 1990 a produção de cocaína ilícita era estimada em 1000 toneladas métricas, pelo menos cem vezes maior do que o pico da produção legal no Peru, no início do século passado.

Fotos:
http://www.a1b2c3.com/drugs/coc03a.jpg
http://www.thegooddrugsguide.com/files/images/c_cocacola_poster.gif

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2 Comentários:

Blogger monidibb disse...

Como é difícil tratar drogadicção no âmbito público.O horizonte é ainda mais sombrio, quando nos referimos aos menores de idade.Parabéns pelo blog, te add no meu cantinho.

24 de julho de 2010 às 12:43  
Blogger Vanessa disse...

Obrigada pelo add. Concordo sobre a dificuldade em tratar a drogadiccao. As politicas necessarias para uma abordagem eficaz nao sao, como dito no post, populares ou de curto prazo e falta vontade politica para tece-las.

24 de julho de 2010 às 15:42  

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