segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Jane Eyre e a loucura

Semana passada assisti a uma adaptação do livro Jane Eyre (pronuncia-se Jayne Ér) de Charlotte Bronte. Já tinha lido o livro e visto outras adaptações, mas a que assisti recentemente, de 1944 com Orson Welles é uma das melhores. Como o livro não é muito conhecido no Brasil, vou fazer um breve resumo antes de partir para o assunto da loucura propriamente dita.


Charlotte Bronte (cuja irmã é Emily Bronte que escreveu "O Morro dos Ventos Uivantes") publicou Jane Eyre em 1847. Acho que conhecer a obra vale pela avaliação da loucura de uma das personagens, mas a leitura pode ser difícil: o livro foi escrito no período vitoriano, no qual o máximo do romance era pegar na mão. O livro fica nesse vai-não-vai o tempo todo. Assim, não julgo quem quiser pular as páginas para uma boa adaptação cinematográfica como primeiro contato com a obra.


O romance tem uma atmosfera gótica, dark (daí eu achar que a adaptação dos anos 40 em preto e branco funciona melhor que as mais recentes), cheia de senso moral do que é certo ou errado.


#####SPOILER##### se você não quer saber do que se trata a obra, pule esta parte.


Na primeira parte, lemos sobre a infância infeliz de Jane Eyre, uma orfã que é abusada emocionalmente e negligenciada pela tia. Um apotecário, simpático ao sofrimento de Jane, sugere que ela seja enviada à uma escola. A tia arranja para que a menina seja enviada aos 10 anos de idade para a Lowood Institution, uma escola de caridade, na qual Jane conhece mais abuso (físico) e negligência.


Aos 18 anos, Jane finalmente parte para o mundo e é empregada como governanta e professora na mansão Thornfield, para ensinar uma pequena menina francesa. Enquanto andava, ela encontra um cavaleiro que caiu e torceu o tornozelo. Ela o ajuda e retorna à mansão para descobrir que o cavaleiro era na verdade Edward Rochester, o dono da mansão Thornfield. Ele é um homem difícil, autoritário e mais velho. Eventualmente, os dois se apaixonam, mas coisas estranhas começam a acontecer: uma estranha risada é ouvida nos corredores da mansão, um incêndio começa e Jane acha um candelabro caído à sua porta, um convidado da mansão é atacado...
Nesse meio tempo a tia malvada de Jane adoece e morre. Jane vai cuidar da tia nos momentos finais e deveria receber uma parte da fortuna de seu falecido tio com a morte da tia, mas a malvada esconde a carta. Ao retornar à mansão, Jane declara seu amor por Rochester, que propõe casamento. Durante os preparativos, uma mulher estranha, de aparência selvagem entra desapercebida no quarto de Jane e rasga o véu do seu vestido de noiva. Mais uma vez, Rochester culpa uma serva bêbada (Grace) pelo acontecido, minimizando os estranhos eventos.


Durante a cerimônia de casamento, um advogado e um senhor de nome Mason aparecem e declaram que Rochester não pode se casar com Jane, visto que já é casado com a irmã do senhor Mason. Rochester finalmente admite que é casado com uma mulher violentamente louca, que ele mantém presa no sótão, aos cuidados de uma serva (Grace). Quando Grace bebe muito, sua mulher escapa e causa os estranhos eventos da mansão Thornfield. Rochester pede a Jane que se mude com ele para a França, onde viveriam como marido e mulher, mesmo que não estivessem casados. Jane se recusa e, apesar de seu amor por ele, Jane foge de Thornfield no meio da noite.


Jane viaja para o norte da Ingalterra e, após ficar miserável e passar fome, acha abrigo com uma família pobre: 2 irmãs e 1 irmão (John). Eventualmente eles descobrem que são parentes e ele conta que Jane tem uma fortuna em seu nome (em torno de 2 milhões de euros em dinheiro de hoje). A família pobre foi cortada da herança, mas como foram muito bons para Jane, ela insiste em dividí-la com eles. John propõe casamento a Jane, para que o acompanhe à Índia como missionários cristãos. Ela aceita ir, mas recusa casamento, sabendo que, embora sentissem muito carinho um pelo outro, eles não se amam. John consegue persuadir Jane a casar-se, mas ela sente Edward Rochester chamar seu nome e parte na manhã seguinte para Thornfield, para ter certeza de que ele está bem, antes de partir definitivamente para a Índia.


Quando Jane chega à mansão, tudo o que encontra são ruínas queimadas. A mulher de Rochester escapou, provocou o incêndio e matou-se, atirando-se do telhado. Rochester tentou salvar a mulher, perdendo uma mão e a vista na tentativa. Jane finalmente o encontra, mas ele teme que ela sentirá repulsa por estar desfigurado. Jane reassegura-o de seu amor e Rochester propõe casamento novamente. Ele eventualmente recupera a visão para ver o seu primeiro filho.
##########Fim do spoiler#########


Bom, se o caro leitor chegou até aqui, pode estar a pensar "o que que esse romance tem a ver com psiquiatria?"


O que me levou a escrever este post não foi o sofrimento de Jane ou o autoritarismo de Edward, mas o sofrimento de uma personagem esquecida no sótão da mansão: Bertha Mason, a louca mulher de Edward. Quando Bertha é finalmente introduzida na trama, no tão esperado dia do casamento de Jane, descobrimos que ela vive em cárcere privado em aposentos que não parecem terem sido desenhados especificamente para seu conforto (a tradução da passagem do livro é minha):


Em um quarto sem janelas queimava uma lareira, guardada por uma alta e forte grade, e uma lâmpada, suspensa do teto por uma corrente. Grace Poole (a serva que cuidava de Bertha) curvou-se sobre o fogo, aparentemente a cozinhar algo em uma panela. Nas sombras profundas, no extremo oposto do quarto, uma figura corria de um lado para o outro. O que era, se animal ou humana, não se poderia saber à primeira vista. Ela grunhia, aparentemente em gatinhas; ela pulava e grunhia como algum estranho animal: mas estava coberta por roupas; e uma quantitade de cabelos escuros e ensebados, selvagem no modo de ser, escondiam sua cabeça e face.
Jane Eyre, Capítulo XXVI. Parte 3


A autora, desta forma, liga a personagem a um vulgar e selvagem animal. As descrições de Bertha que seguem são ainda mais cruéis: Bronte a denomina "a hiena vestida", a "maníaca", a "lunática". A história pregressa de Bertha é contada por Edward Rochester (um narrador parcial) e apenas de forma sucinta (e sem qualquer sombra de simpatia por sua condição):


Bertha Mason é louca... ela veio de uma família de loucos; --idiotas e maníacos por três gerações! Sua mãe, a crioula, era tanto uma louca quanto uma alcoólica" - como descobri depois que me casei com a filha: pois eles eram silenciosos sobre os segredos da família anterior ao casamento. Bertha, como uma boa filha, copiou seus pais nos dois aspectos... Oh! minha experiência tem sido desastrosa, se você pudesse saber!
Jane Eyre, Capítulo XXVI. Parte 3
ilustração da segunda edição de Jane Eyre, 1847, F.H. Townsend




Aqui ficamos a saber que não apenas o tratamento ao doente mental (Bertha) é horroroso, mas como as personagens principais (nomeadamente Edward Rochester) são também racistas, visto que culpam a loucura de Bertha em sua linhagem racialmente "impura" e ao clima tropical das Índias do Oeste (Jamaica), onde ela cresceu. Em outro post, sobre Banzo Negro, havia demonstrado a ligação que se fazia entre "paixões" e o sangue quente dos negros.


O fato de Bertha ser trancada e mantida em segredo no sótão mostra a vergonha que os familiares sentiam em ter doentes mentais na família. Ao contrário de Bertha, era comum na segunda parte do século 19 que doentes mentais fossem mantidos em asilos. Entretanto, uma rápida pesquisa demostra que mesmo para os asilos da época, as condições impostas à Bertha seriam consideradas desumanas. Além do mais, à Bertha não é concedida o dom da fala, que a autora poderia ter julgado como essencial do ser humano, degradando-a ainda mais à condição animalesca. Somente em 1966, quando outro autor (Jean Rhys) escreveu The Wide Sargasso Sea* é que Bertha teve voz e personalidade. No romance de Rhys, Bertha desenvolve-se como personagem, com desejos e aspirações próprios até que a doença a atinge. Rhys livra Bertha do estigma criado por Bronte de que a "loucura é inextricavelmente comparável à falta de motivação e compreensão lógica" (Oyebode, 2004). A Bertha de Rhys compele empatia por sua condição.


Para concluir, acredito que os profissionais de saúde mental tem plena liberdade de escolher lerem ou não livros de ficção e outras obras que ilustram o pensamento sobre a doença mental. É importante salientar, entretanto, que estes relatos sem dúvida influenciam como a sociedade e o público percebem e reagem à doença mental. Mesmo sendo um romance vitoriano inglês, Jane Eyre repercute na teledramaturgia brasileira, por exemplo, com a esposa louca de Carlos Vereza (Barão de Montserrat) em "Direito de Amar", interpretada por Ítala Nandi, que vivia trancada no sótão. A imagem do louco violento trancado e escondido em quartos secretos permeia o inconsciente popular. Romances e obras de ficção contam-nos algo sobre as suposições da sociedade sobre a doença mental. Espero que este post tenha-o instigado a conhecer a obra e quem sabe, procurar conhecer outras personagens estigmatizadas pela doença mental.
novela "Direito de Amar"


Referências:


ResearchBlogging.org


Brontë, Charlotte. Jane Eyre. New York: Norton & Co., 2001
Cho, K (2003). Contextualizing Racialized Interpretations of Bertha Mason's Character. http://www.victorianweb.org/authors/bronte/cbronte/cho10.html
Iwama, M. (2003). Bertha Mason's Madness in a Contemporary Context. http://www.victorianweb.org/authors/bronte/cbronte/iwama8.html
Oyebode, F. (2004). Fictional narrative and psychiatry Advances in Psychiatric Treatment, 10 (2), 140-145 DOI: 10.1192/apt.10.2.140


Fotos: http://4.bp.blogspot.com/_94wGm5Prdv0/SfOQukq04xI/AAAAAAAAChE/6v6EPoMCiEA/s400/Poster+-+Jane+Eyre+(1944)_07.jpg
http://intertekst.pl/pliki/409px-P272b.jpg
http://www.teledramaturgia.com.br/images/direitof.jpg

*Para quem quiser conhecer a obra que fala de Bertha Mason antes da loucura, Wide Sargasso Sea foi adaptado pela BBC recentemente (2006). Infelizmente acho que nem o livro, nem a adaptação foram traduzidas para o português. O trailer pode ser conferido abaixo, para os que se interessarem.

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2 Comentários:

Blogger Exahmia disse...

Vou passar aqui mais logo para ler o post com calma.
Este filme é o meu filme preferido de todos os tempos, adoro este filme,
estudo arte (incluindo cinema) mas o que eu gosto a cima de tudo são de histórias e para mim esta é a mais bela de todas, este romance gótico é absolutamente lindo. Definitivamente é um filme que todos têm de ver. Há muito poucos filmes que recomendo, mesmo muito poucos, apesar de estudar cinema, e este é um deles.

22 de fevereiro de 2010 às 12:17  
Blogger Exahmia disse...

Não resisti e acabei por ler agora (mesmo sem tempo e atrasadíssima para sair) tenho pensado muito sobre esse tema da loucura e a forma como a sociedade, principalmente a familia do doente mental o vê, nos dias de hoje, se no passado éramos escondidos em sotãos hoje continuamos a viver numa "prisão" mas deixou de ser física, falando muito especificamente no meu caso, eu não vivo num sotão, mas vivo sozinha por opção, sinto necessidade de me isolar, fartei me de ser julgada "mimada, caprichosa, tem de ter tudo o que quer quando quer, precisava é de ter levado porrada, sempre foi rebelde" eles nunca vão entender que não capricho nem mimo é doença e eu sofro demais com isso, e não vou parar de sofrer. Luto todos os dias para não sucumbir de vez á loucura, cada minuto que me consigo manter sã é uma vitória é um minuto que ganho longe do colete de forças, porque eu tenho medo de voltar para o hospital psiquiatrico, ninguém quer estar lá, e até quando estive acharam que foi por capricho, temos medo, ninguém quer ir para lá e estar frágil e medicado sem forças e ter de parecer normal porque todas as nossas atitudes são suspeitas e podemos ser amarrados a uma cama, temos medo muito medo e sofremos.
Vivo sozinha, a minha casa é o meu sotão, os meus animais, não me julgam e para eles eu sou normal. Não me sinto segura nem protegida em lugar algum.
A minha familia não vai entender que não é capricho, nao é problema espiritual, não é o diabo, é doença. Felizmente tenho amigos que até entendem, mas também eles se cansam as vezes, é muito complicado e cansativo, é tortuoso ser eu. É necessário um sotão.

22 de fevereiro de 2010 às 12:31  

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