quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A médica como paciente II


Continuando o post anterior, no qual delimitei os princípios dos sistemas de saúde públicos da Inglaterra e do Brasil, continuarei agora meu relato pessoal de como experimentei os dois, como médica e como paciente.

Desde que fiquei grávida, contactei uma equipe de midwives (parteiras) que fica na clínica do meu médico de família. Cada local tem seu próprio médico de família (uma pequena clínica com profissionais médicos, enfermeiros, etc) que direciona o tratamento do utente. A primeira consulta foi na minha casa, na qual a midwife (enfermeira parteira) veio conhecer-me e fazer uma avaliação básica da minha saúde. A consulta demorou uma hora, transcorrendo mais como uma conversa entre amigos e ocorreu na mesa da minha sala de jantar, onde nos sentamos os três: a enfermeira, meu marido e eu. Foi preenchida uma ficha de avaliação clínica e a profissional aferiu minha tensão arterial e pulso. Ao final da consulta foi me dado um calendário com a programação das consultas e ultrassons que deveria ter e quando estavam previstos para ocorrer. Como o sistema é público, evita-se o desperdício e não se faz ultrassom em todas as consultas (como no sistema privado no Brasil). O primeiro ultrassom ocorre às 12 semanas (ou ecografia, como se diz em Portugal), já que o índice de abortos espontâneos é muito menor a partir desta data e, se tudo corre bem, o próximo ocorre só com 20 semanas. Se outros procedimentos são necessários, tanto a midwife quanto o médico de família (GP) são porta de entrada e provedores de outros serviços mais especializados.

Este foi um apanhado geral para chegar ao ponto mais pertinente: Embora viva em Cambridge e meu hospital seja um hospital escola (e o único da cidade) NUNCA fui vista por nenhum aluno. Aqui começam as diferenças entre o que experimentei como aluna e o que vejo agora como paciente. Quando fui realizar meu ultrassom anátomo-patográfico (20 semanas), observei em um mural que o hospital solicitava voluntários para uma aula de ultrassonografia. Não aguentei a curiosidade e me candidatei por escrito, recebendo pelo correio, na semana seguinte, instruções sobre a aula. Uma brochura explicava que esta era uma aula para ensinar a residentes de ginecologia e\ou imaginologia como fazer medições básicas de fetos entre 18 a 25 semanas. Um médico especialista estaria presente o tempo todo para dar instruções e a sessão demoraria uma hora. Um livreto explicava o que é o ultrassom e como o exame é realizado. Um papel com instruções explicava para onde deveria me direcionar, quem me atenderia, que seria fornecido um lanche rápido para os voluntários, e que as despesas de viagem e estacionamento seriam pagas pela disciplina.

No dia em questão, chegamos ao hospital (meu marido e eu) e fomos simpaticamente recebidos por uma enfermeira que nos direcionou a um grande salão. Havia uma pequena sala de espera com diversas grávidas e uma mesinha com uma cesta de frutas frescas. O salão havia sido dividido em pequenas salas de exame por biombos (eu contei pelo menos 10) e durante todo o dia grávidas passariam por eles de hora em hora. Fui chamada e assumi a posição para o ultrassom. Os dois alunos presentes se apresentaram, assim como o professor. Quando todos estavam prontos, iniciou-se o exame e a cada 15 minutos era questionada se estava a me sentir bem e se poderíamos continuar. Ao final de meia hora, o segundo aluno iniciou os mesmos procedimentos do primeiro e ao final do exame (final da minha hora) o professor imprimiu gratuitamente para nós as melhores fotos do nosso bebê (geralmente cobra-se 2 libras por foto no NHS).

Não quero dizer que o NHS não apresenta problemas. Como toda política pública, existem arestas a serem aparadas e erros que são cometidos. Mas ideias boas devem ser aproveitadas, especialmente quando se compara a realidade que conheci no Brasil:

Nunca tive um bebê no SUS em Uberlândia, mas obviamente fui aluna de Ginecologia e Obstetrícia no Hospital de lá e não só, passei por todos os departamentos. O que se vê é obviamente bem diferente...

Em Uberlândia, para começar, o sistema está afogado: O Hospital escola é referência para uma região de pelo menos 3 milhões de pessoas e é o único que atende o SUS. As cidades pequenas ao redor podem dispor de suas verbas a seu bem entender (o SUS não é centralizado como o NHS, mas local, lembram?) e ao invés de investir em médicos de família e equipes de triagem, compram uma ambulância para transportar mais rápido para Uberlândia. Assim, serviços que poderiam facilmente serem prestados localmente incham e as filas de espera estendem-se quilometricamente. São necessários meses para uma consulta de avaliação para uma cirurgia de vesícula, por exemplo, que poderia ser facilmente realizada por um médico de família.

Mas, pior que tudo é o nível do cuidado prestado. Não estou a dizer que os médicos do Hospital de Clínicas de Uberlândia são ruins. Muito pelo contrário! São profissionais extremamente competentes em sua grande maioria e diversas vezes fui atendida por eles em seus consultórios privados. O que ocorre em Uberlândia é um garroteamento do serviço. A demanda insana encontra um cuidado prestado principalmente por alunos. Se um dia os alunos de medicina da UFU e os residentes (que afinal de contas também são alunos, com inscrição no CRM mas ainda sem especialização) resolvessem entrar em greve, colocariam o hospita contra a parede. O número de médicos é insuficiente e os alunos estão na primeira linha de atendimento.

Lembro-me de minha passagem pela pediatria, por exemplo. Haviam 5 alunos (pelo menos) de plantão junto com 2 ou 3 residentes e 2 chefes de plantão (os pediatras especialistas de fato). Isso para atender a demanda insana do pronto socorro. Lembro-me de em uma tarde atender pleo menos 35 pacientes! É claro que apenas 2 médicos especialistas jamais dariam conta de tamanho serviço. O que ocorre é que estudantes chamam o paciente e fazem a primeira avaliação. Depois discutem com o residente ou o especialista (aquele que encontram primeiro) que faz uma rapida consulta de 5 minutos para confirmar os achados do estudante.
Percebam, não quero culpar os colegas médicos. O sistema é absurdo! Mais contratações seriam necessárias, mas o hospital (como os demais no país) vive estrangulado por falta de verbas.

O paciente, coitado, nunca tem a opção de não ser visto por um aluno. Já seu primeiro contato com o sistema é feito por um aluno muitas vezes SEM supervisão a todo momento (só a revisão de seu relato). Os pacientes não estão ali para serem vistos por profissionais não formados, da mesma forma que os alunos e residentes não deveriam carregar o hospital nas costas. Todo o sistema encontra-se pervertido e obviamente falhas grotescas de atendimento esperam por ocorrer a todo momento.

Ao escrever este post, lembrei-me de uma situação que ocorreu nos meus tempos de aluna que transcrevo de uma das páginas de notícia do Diretório Acadêmico da UFU. Os nomes dos médicos foram removidos, para garantir sua privacidade. A notícia pode ser lida na íntegra aqui.

Sete pessoas são acusadas pelas mortes de uma paciente e de seu bebê no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, e podem ir a júri popular. Os acusados são quatro médicos, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem.


Segundo denúncia feita pelo Ministério Público Federal, a paciente EPF chegou ao Hospital das Clínicas no início da madrugada do dia 29 de novembro de 2004 já em trabalho de parto e foi atendida inicialmente na Unidade de Atendimento Integrado. Em seguida, a paciente foi transferida de urgência para o HC. O feto estava em posição pélvica.



Percurso

Da transferência até o parto a paciente deparou-se com problemas de comunicação entre profissionais da saúde que a atenderam. De acordo com a inicial, o primeiro médico que atendeu Edinalva telefonou para a médica de plantão do HC relatando o encaminhamento da paciente. À época, o médico também comunicou a transferência de outra paciente — AEC — que teve a bolsa amniótica rompida.

A médica plantonista HBM não atendeu E e delegou a função ao sextanista do curso de Medicina, GBA, e à auxiliar de enfermagem NS. O estudante não determinou a realização de exames complementares e teria respondido à paciente e ao seu acompanhante que o parto seria normal e que “o médico aqui sou eu”.

A médica residente HB, que se encontrava descansando, recebeu a ocorrência e, sem interromper seu descanso, receitou a aplicação do medicamento Buscopan Composto Endovenoso para as dores da paciente.

Em seguida, GB atendeu a paciente AE, mas, ao constatar que o bebê estava nascendo, deitou-a em uma maca do Pronto-Socorro da Enfermaria e, segundo a inicial, inexplicavelmente empurrou o feto para dentro da paciente, causando um aborto não-consentido, crime previsto no artigo 125 do Código Penal. O estudante também foi dormir, deixando E aos cuidados das enfermeiras plantonistas.

Naquela madrugada, também estavam de plantão no HC os médicos JPRJ e APLJ, mas eles não foram vistos no Pronto Socorro da Ginecologia durante todo o tempo dos fatos, embora fossem os responsáveis pelo setor.


Segundo apurou o MP (Ministério Público), por volta das 3h, as duas auxiliares de enfermagem, LMP e NS, a médica H e o estudante G encontravam-se, todos, dormindo quando as pacientes estavam na enfermaria.

Agravantes

Ainda de acordo com informações do MP, a auxiliar L estava embriagada. Durante o procedimento investigatório, ela afirmou que era seu costume beber antes de comparecer ao trabalho, tendo trabalhado alcoolizada por diversas vezes, fato que era do inteiro conhecimento do enfermeiro MNC coordenador do setor de enfermagem.

Na troca do plantão, às 7h, a enfermeira VM percebeu a gravidade do caso e o comunicou à médica residente LR que havia acabado de substituir H. A bolsa havia se rompido e a criança teve problemas como apnéia e cianose generalizada. Não resistiu às tentativas de reanimá-la não e morreu uma hora após o parto.

A mãe permaneceu na enfermaria. Com quadro infeccioso crescente e generalizado, no dia 1º de dezembro foi encaminhada para a UTI, vindo a falecer no dia 14 seguinte.

Acusação

Segundo relato do MP, o interno G, "percebendo a gravidade dos acontecimentos, procurou o prontuário do setor, o qual não continha qualquer registro a partir da meia noite, e em combinação com a inculpada H, inseriram declaração falsa no sentido de que a paciente teria sido examinada à 1h e às 3h da manhã, com o claro propósito de se furtarem de eventual responsabilidade civil e criminal". Por essa razão, além do crime de homicídio doloso, eles são acusados também do delito previsto no artigo 299 do Código Penal, a falsidade ideológica.

Os médicos JPRJ e APLJ e o enfermeiro MNC são acusados de homicídio culposo, prevaricação e abandono de função porque, apesar de escalados para plantão no dia dos fatos, não foram encontrados em qualquer dependência do hospital. As auxiliares de enfermagem LMP e NS irão responder por homicídio culposo.

Ao oferecer a denúncia, o procurador da República Cléber Eustáquio Neves requereu o encaminhamento de cópia ao Conselho Federal de Medicina, para que este órgão realize sindicância no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. O objetivo é apurar o descumprimento de normas e procedimentos que regulamentam a atividade médica, o exercício regular de plantão e o atendimento adequado a ser dispensado a pacientes em situação de urgência e emergência.


Fonte: Site Última Instância, 09/04/2007.



Nota oficial da Direção do Hospital de Clínicas da UFU

Com relação à denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal envolvendo médicos e enfermeiros do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC/UFU), a Direção do hospital informa que:

O Hospital de Clínicas ainda não foi notificado judicialmente sobre o caso e, assim que for, tomará as providências cabíveis. No entanto, a Direção tomou conhecimento da denúncia por meio da Procuradoria Geral da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e está apurando os fatos.

Foto: http://blogs.freshminds.co.uk/research/wp-content/uploads/2009/01/nhs276.jpg

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1 Comentários:

Blogger esqueci a ana (ex-ana) disse...

Vanessa, como sabe em Portugal existe para a maior parte da população o 'médico de família'. Há seres humanos e profissionais excelentes no sistema de saúde. O público tem sistematicamente carências materiais.
Ao ler o seu post no que se refere aos médicos e estagiários, recordei algo que tinha lido no site da AFAAB. Que transcrevo (é um pedido que não sei se já teve eco naquela instituiçãi em concreto, mas que se aplica a muitas outras situações)
Com o título Estagiários nas consultas, foi deixado em 2009-11-02, no site da AFAAB o seguinte comentário:
Sendo estas doenças todas de carácter muito pessoal, onde dificilmente quem sofre delas tem sérias dificuldades em estabelecer uma relação deconfiança com o respectivo psiquiatra, na maioria das consultas hospitalares de dca [doenças do comportamento alimentar; TA] há não um, não dois, mas normalmente três estagiários a assistirem à consulta.
Bastantes doentes, sentindo-se inibidas, não partilham os problemas com o médico, chegando mesmo muitas delas a esconderem bulimias, pois não conseguem "confessar-se" na presença de auditórios.

21 de janeiro de 2010 às 20:12  

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