Contra factos não há argumentos
Se tem uma frase que aprendi em Portugal e não me canso de repetir é "Contra factos não há argumentos". Os brasileiros não tem tal expressão, utilizada geralmente para encerrar uma discussão e mostrar o lado mais forte do debate. Essa frase veio-me à cabeça e tem circulado em meus pensamentos cada vez que leio notícias sobre políticas da toxicodependência.
Acho que deve ser ano eleitoral no país, pois tenho lidos nos jornais desde o meio deste ano uma certa movimentação de bastidores e reativação de alianças políticas. E como não poderia deixar de ser, a toxicodependência entra em debate, sendo um dos carros fortes das políticas públicas de saúde portuguesas.
Aqui devo esclarecer: eu não voto em Portugal e nem mesmo moro mais no país. Entretanto, como profissional que lida com a dependência química e, tendo testemunhado como estrangeira os bons caminhos da assistência em saúde mental e toxicodependência deste pequeno país europeu, quando comparados com outros países que visitei e vivi, não pude me conter em escrever este relato.
Sei que sou ingênua no campo político, mas ainda acho incrível como pessoas que têm muito pouco peso no assunto tem à disposição tanto tempo na comunicação social (mídia) ou muito peso como aliados políticos. Já há muito que no campo da Medicina a ciência e o poder estatístico, que comprovam a veracidade de uma determinada intervenção, é que determinam se há ou não melhora de determinado quadro. Esta atitude científica do último século possibilitou a revolução na saúde, que testemunhamos e usufruímos nas últimas décadas. Mesmo tendo escrito um artigo recente sobre a constante prevalência da psiquiatria biológica sobre as demais formas de investigação, em hora nenhuma neguei o seu peso e validade no exercício deste campo da medicina.
E é aqui que entra o problema da toxicodependência, ainda um campo de batalha "sem dono". A psiquiatria estuda-a e a categoriza em seus tratados e sistemas classificatórios. As associações de doentes, seja o AA ou NA não aceitam o modelo médico e procuram se entregar a "um poder maior" (método que tem sido justificado em diversas pesquisas). Criminalistas, sociólogos, experts de todas as áreas têm algo a dizer sobre o assunto. Mas em geral, dentro de seus próprios discursos, há uma certa concordância, uma norma que todos procuram cumprir.
Por isso causa-me tanta confusão a presença de uma figura que distoa de todos os experts acima no cenário da toxicodependência portuguesa. Este médico é um cirurgião (que parece também ter exercido a medicina desportiva), que eventualmente acabou por trabalhar com adictos\dependentes químicos e escreveu alguns livros sobre o assunto. Em uma rápida busca no PubMed, site que disponibiliza os textos científicos das áreas da biologia, não foi possível encontrar um trabalho do "pesquisador" sobre o assunto. E o trabalho científico publicado após peer review (revisão crítica por pares) é um dos pilares sagrados da "Medicina baseada em evidências". Porque fora dele, eu posso escrever o que bem quiser, que a esquizofrenia é causada por ondas eletromagnéticas solares ou que a depressão não existe mas é somente uma disfunção dietética.... mas isso não é ciência...é fé. E desde os trabalhos de Galeno, Newton e outros temos de provar o que dizemos (q.e.d - quod est demonstratum). Contra factos não há argumentos.
Um homem que diz, nos dias de hoje, apesar de todas as evidências em contrário, que a toxicodependência não é doença, mas uma fraqueza moral, que tenta nos vender a idéia de que um País sem drogas é completamente possível (mesmo que a história da humanidade se entrelace com o uso e abuso de álcool e opióides desde a pré-história) e que escreve um livro que diz que apenas o esporte pode curar a dependência química não deveria fazer parte de qualquer discurso político sério sobre o assunto.
Este texto não é uma crítica pessoal ao médico em questão. Embora discorde de todas as suas visões sobre o campo da toxicodependência, eu o conheci pessoalmente e sei que pessoa agradável é, um charmoso bon vivant (no melhor sentido da palavra), interessado em bons vinhos, refeicões e mulheres. A crítica aqui, dá-se aos políticos e à comunicação social, que lhe atribuem tanto tempo nas telas e jornais.
Tantos bons pesquisadores nas áreas e os políticos até hoje (seja no Brasil ou em Portugal) não aprenderam a cercar-se deles para definirem estratégias certas e de base para se tratar dos problemas, sejam eles sociais, criminais ou de saúde...
É.... contra factos não há mesmo argumentos.
Foto: A tríade da medicina baseada em evidência, disponível em http://med.fsu.edu/informatics/EBMtriad.jpg
Marcadores: cocaina e crack, dependencia quimica, heroína e opiáceos, maconha/cannabis/haxixe, toxicodependencia
3 Comentários:
Concordo plenamente com o que disseste. Há anos ouvimos as mesmas asneiras dessas pessoas.
A.
Apesar de me considerar atenta às notícias em geral, não consegui identificar a pessoa que referes.
Mas que no desespero de busca de soluções quem 'vende gato por lebre' tira proveito económico e outros dessa situção é evidente.
Felicito também a tua chamada de atenção para a diferença entre o que pode ser considerado ciência (objecto de triagem pelos pares) e do que é mera charlatanisse ou banha da cobra.
Num terreno diferente da toxicodependência, a anorexia nervosa, e como mera observadora interessada mas não especialista também tenho encontrado muitas propostas sem fundamentos científicos.
Mais uma vez obrigada pelo teu blogue que trás para o público em geral questões importantes mas que são tratadas pelos meios de comunicação social com muita , muita ligeireza. Por vezes é tão mau desconhecer um assunto como ter sobre ele uma ideia errada.
Obrigada pelo comentario. Depois que escrevi o artigo me lembrei que queria ter adicionado algo: A pessoa da qual estou a falar ou qualquer pessoa que diga coisas sobre o assunto que for não é o alvo da crítica. Liberdade de expressão é isso mesmo e todos temos o direito de emitir as opiniões que acreditamos. A crítica é mesmo aos políticos e à mídia (comunicação social) que muitas vezes publicam ou dizem coisas "one-sided", sem direito a debate. É aí que mora o perigo...
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