segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Banzo negro



Aviso! Antes de me linchar, leiam a letra da música toda e o post a seguir.

Quando era criança, minha mãe costumava cantar uma música folclórica antiga, que ela também aprendeu quando criança e não consegui localizar sua fonte pela internet. A música era assim:

"Negro não sabe o que é dor
Negro não tem alma não"
Assim dizia o feitor
Com o chicote na mão


Malvado banzo no ar
Quero à pátria voltar
Na minha terra sou livre
Como avezinha no ar

Gostava da melodia mas, ainda pequena, fiquei curiosa e perguntei à minha mãe o que era "banzo" pois nunca tinha achado uma definição para a palavra e lembro-me de ela explicar: "Banzo é uma tristeza que os escravos sentiam quando vinham para o Brasil. Muitos morriam por causa disso. É uma saudade muito intensa"

A sugestão para este post veio de uma colega da blogosfera, responsável pelo blog\blogue "Esqueci a Ana". Ela lembrou-me do banzo e numa pesquisa rápida notei que existem muito poucos sites que explicam de forma clara o que era essa manifestação psicopatológica. A pesquisa lembrou-me da música e daí a criação deste post.

A origem da palavra “Banzo” é bastante discutida, mas parece que tem raízes africanas, e equivale a “pensar ou meditar”. Em relatos médicos antigos (descritos melhor abaixo), o termo também designa uma doença. A maioria das definições traz que banzo era um estado de melancolia e depressão profunda que se apossava do africano logo após o desembarque no Brasil, seguido de parada da alimentação e da comunicação. Geralmente, os que caíam nessa situação de nostalgia profunda terminavam morrendo. Pensava-se que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos (aqueles diretamente vindos da África) e, assim, as demais gerações não pereciam deste mal.


Há, porém, quem explique o banzo sem recorrer a causas psicológicas, alegando que os africanos assim ficavam porque já estavam contaminados, antes de embarcar, pela "doença do sono", enfermidade decorrente da picada da mosca tsé-tsé. Esta hipótese, no entanto, deixa a desejar já que muitos dos escravos acometidos do banzo terminavam suicidando-se, o que não ocorreria no caso da doença do sono. João Ribeiro (1900) assim descreve os africanos escravos acometidos da moléstia:
"Uma moléstia estranha, que é a saudade da pátria, uma espécie de loucura nostálgica, suicídio forçado, o banzo dizima-os pela inanição e fastio, ou os torna apáticos e idiotas". [Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura]

Segundo Venâncio, “no século 19, com o desenvolvimento das primeiras teorias psicológicas, o comportamento dos escravos banzeiros foi reconhecido como distúrbio mental. Em 1844, Joaquim Manoel de Macedo, na tese médica intitulada Considerações Sobre a Nostalgia, afirma:: “[...] estamos convencidos de que a espantosa mortandade que entre nós se observa nos africanos, principalmente nos recém-chegados, bem como de que o número de suicídios que entre eles se conta, tem seu tanto de dívida a nostalgia [...]”

Em um artigo que comenta dois estudos sobre as doenças no Brasil da primeira metade do século 19, Oda (2008) transcreveu e lidou com as antigas descrições de banzo. Nos textos pesquisados pela autora, o botânico bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) que escreveu sobre banzo negro e banzo de índio, acreditava que os índios possuíam um temperamento linfático, caracterizado pelo predomínio de humores frios (fleuma e bílis negra – ou melancolia) e sangue frio, considerando-os “anfíbios humanos” (Martius, 1939, p. 52, citado por Oda, 2008). Já os negros, em contrapartida, segundo o o mesmo autor, apresentam excesso de calor físico e moral, conjugados à vivacidade de sentimentos. O autor também caracteriza o banzo como “mortal nostalgia decorrente da perda da liberdade: enquanto o índio se transforma em um autômato e permanece trabalhando, sombrio e definhando em silêncio, o negro não só sente muito mais como expressa seus sentimentos de forma aberta e dramática, acentuando-os ao máximo; fisicamente mais forte do que o índio, observa o naturalista, o negro resiste mais tempo neste espetacular estado melancólico.”

Venâncio cita em seu artigo diversos exemplos de suicídios cometidos por pessoas possivelmente acometidos por “banzo”, publicados no Jornal do Commercio. Os relatos podem ser lidos na íntegra no link disponível na seção "referências" deste post. Abaixo a descrição retirada do artigo de Ode, 2008, de Von Martius sobre o Banzo em 1844.

O ciúme, os castigos injustos, a nostalgia, levam freqüentemente os negros a se deixarem morrer, resolução que nada pode vencer, que não cede a ameaça alguma, nem a qualquer espécie de promessa de bem-estar futuro, inabalável até a completa execução do suicídio voluntário. Raymond (sic) Jalama, octogenário que durante dez anos exercera a função de administrador das Companhias de comércio de escravos do Pará e Pernambuco em São Paulo de Luanda, no reino de Angola, e pelas mãos do qual mais de um milhão de negros e negras haviam sido comprados e vendidos, assinalou muitos casos de suicídio provenientes das causas mencionadas; foi citado, entre outros, um depoimento seu sobre fato curioso e interessante, na memória de Luis Antonio de Oliveira Mendes,14 que no Brasil teve ocasião de observar mortes lentas, espécies de consumpções produzidas pela inanição, e devidas a uma causa moral. A tendência às idéias funestas é muito comum entre estes infelizes: já os jesuítas recorriam à música para os distrair desta tendência funesta. Os grandes proprietários de engenhos de açúcar, os que dirigem as turmas15 de escravos [ateliers], enfim, os plantadores [planteurs] que contam com grande número de escravos imitaram este exemplo, que eles fortalecem o mais que podem com práticas da nossa santa religião. Carl Friedrich Philipp von Martius. Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros (1844). Tradução, prefácio e notas de Pirajá da Silva. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. [Tradução de Das Naturell, die Krankheiten, das Arztthum und die Heilmittel der Uberwohner Brasiliens], descrito em Oda, 2008.




Referências

ResearchBlogging.org
Paulo Dalgalarrondo (1999). First reports of mental disorders of Brazilian natives: descriptions by Von Martius (1844) Revista Brasileira de Psiquiatria, 21 (1), 48-49 : 10.1590/S1516-44461999000100010
Moura, Clóvis. (2004). Dicionário da Escravidão Negra no Brasil.

Mealha, R. (2009). Portugal Remix. Banzo: A tristeza profunda que os portugueses deram aos escravos.

Ana Maria Galdini Raimundo Oda (2008). The disease known as banzo: excerpts from Sigaud and von Martius [1844] Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11 (4), 762-778 : 10.1590/S1415-47142008000500004

Venâncio, RP. (2003). Banzo: a melancolia negra. A depressão e o suicídio dos escravos eram fatos corriqueiros. Revista Aventuras na História.

Foto: Retirada do blog "Entendes tu o que lês?", disponível em https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQuOBJCR85QqHzJ31wNq5VRlMZO8qmgbyoz9jRcYG-nlLwtQLM0l-BQebaOsIsYBqx6bfoVC469bLinA-3j0qVFZYXuaKBCaOgnGn9Ae79hdPYglUu0QaOKmF98D8_qVwMRCIXYJuwUt0/s1600-h/escravidao.jpg

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8 Comentários:

Blogger esqueci a ana (ex-ana) disse...

Parabéns Vanessa pela tua pesquisa. Mais uma vez, depois da visita ao teu blogue fico a saber coisas novas. Merece ser lido com muita atenção.

7 de dezembro de 2009 às 16:18  
Blogger Vanessa disse...

ex ana:
Obrigada pela dica e pela participação. Dessa forma, fica muito mais multi\intedisciplinar pois todos podem opinar, sugerir e criticar! Todos têm voz na discussão de tópicos em saúde mental e comportomento.

8 de dezembro de 2009 às 11:55  
Blogger Newton Kage disse...

Olá!
Brilhante post!
Lembro-me que na escola aprendi a respeito de "banzo", mas não conseguia sentir na profundidade...
Hoje imagino o que seja isso! Somente nos colocando no lugar dos outros conseguimos sentir com profundidade o sofrimento alheio!
Td de bom a vc!

8 de dezembro de 2009 às 18:51  
Blogger Vanessa disse...

Pois, fiquei surpresa de ver que ainda existe muita confusão sobre o que é o banzo e muitos poucos estudos sobre o assunto. A escrever este post também aprendi mais sobre esta parte histórica da doença mental no Brasil.

8 de dezembro de 2009 às 21:28  
Blogger LOUCA PELA VIDA disse...

Olá... obrigada pelo comentário no Ninho.Muito interessante suas postagens. Esta sobre o Banzo principalmente. Um amigo, músico e pesquisador da cultura popular já me sugeriu uma pesquisa sobre a incidência dos transtornos mentais em pessoas negras, ele acha que pode haver alguma relação com o banzo. Muito legal, parabéns!!!Abraço

9 de dezembro de 2009 às 00:26  
Anonymous Alexandre Guimarães Vasconcellos disse...

Olá Vanessa,
Estou escrevendo um livro de fotopoesias e acho que uma delas tem muita relação com sua pesquisa e com o desenvolvimento da identidade brasileira do negro.
Espero que ajude a fervilhar as idéias. É um presente para você.
Abraço,

Alexandre Guimarães Vasconcellos

TENHO NOME SEU MOÇO

ASSIM NASCI,
QUANDO CEDO E INDEFESA FUI TRANSPORTADA PARA LONGE.
NOS GRILHÕES DO NAVIO FÉTIDO PENSAVA NOS MEUS PAIS,
NA MINHA TERRA,
NO CHEIRO DAS MINHAS COISAS.
COM TODOS OS PROBLEMAS EM VOLTA,
AS VEZES ME PEGAVA RINDO DENTRO DE MIM,
LEMBRANDO DO MEU PRIMEIRO AMOR.
AO CHEGAR COMPARAVA TUDO,
O RUIM E O BOM,
AS LEMBRANÇAS COM AS VIVÊNCIAS
E ANDAVA EM CÍRCULOS FEITOS DE RESISTÊNCIA E DOR
SEM ESQUECER NEM PISAR NAS MINHAS PEGADAS.
SÓ FUI BATIZADA NAS TERRAS DAQUI
E ASSIM MESMO QUANDO MORRI.
DEU PROBLEMA NA IDENTIDADE.
QUERIAM ME ENTERRAR COMO BANZO
MAS DEPOIS RECONHECERAM POR JUSTIÇA QUE MEU NOME SEMPRE FOI E SERÁ SAUDADE.

3 de março de 2010 às 13:19  
Blogger Vanessa disse...

Caro Alexandre

Adorei seu presente, muito bela sua expressão. Obrigada por partilhar e participar do blog.

3 de março de 2010 às 13:22  
Blogger marcinha disse...

Simplesmente demais. Agradeço a todos. Comovida♡♡

25 de setembro de 2016 às 18:16  

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