quarta-feira, 10 de março de 2010

Narciso e Eco: as prisioneiras do espelho e do discurso

Research Blogging Awards 2010 Finalist
Nos últimos posts escrevi algo sobre mitologia grega e me lembrei dos laços que amarram as áreas psi ao classicismo grego. A mitologia grega foi uma de minhas primeiras paixões adolescentes, quando comecei a "colecionar" mitos em meu diário, e influenciou grandemente a escolha de minha carreira. Além do mais, o últimos posts sobre psicopatia foram um bocado "pesados" e gráficos e sinto a necessidade de discorrer hoje de uma forma mais lírica.

Uma boa história deve sempre começar do começo:

Zeus, rei dos deuses Olimpos, era terrivelmente mulherengo e adúltero. Hera, sua esposa, deusa da casa, já estava cansada de saber de suas escapadelas e era muito ciumenta. Zeus não discriminava ninguém: deusas, mortais ou ninfas - espíritos femininos associados a um local particular, especialmente florestas. Para garantir suas escapadelas Zeus empregava a ajuda da bela ninfa Echo, famosa por adorar argumentos e ter sempre a última palavra, que costumava tocar instrumentos e contar longas histórias para sua mulher enquanto ele desaparecia pelas florestas. Quando Hera descobriu que estava a ser enganada, ela puniu a comunicativa ninfa roubando-lhe a voz, deixando-lhe apenas a humiliante capacidade de repetir palavras gritadas. Assim, tudo que Echo poderia fazer era repetir a voz de outrem e ter sempre a última palavra.

Certo dia, ao andar pela floresta, Echo viu Narciso a caçar veados. Narciso era tão belo que sua mãe (uma ninfa) preocupou-se com seu bem estar quando ele nasceu (era comum os deuses se invejarem e punirem pessoas ou outros com habilidades fenomenais). Ela recorreu a um oráculo que lhe disse "Narciso viverá uma longa vida, desde que não se conheça". Pois Echo não pôde resistir à beleza de Narciso e pôs-se a seguí-lo, enquanto desejava ardentemente falar-lhe na voz mais suave e ganhá-lo em conversações. Ela esperou impaciente para que ele lhe falasse primeiro, para que pudesse respondê-lo.

Um dia, separado de seus companheiros de caça, Narciso finalmente gritou, "Quem está aí?", ao que Echo respondeu "Aí". Narciso olhou ao redor e não encontrou ninguém, dizendo "Venha", ao que Echo respondeu "Venha". Como mais uma vez não apareceu ninguém, Narciso gritou novamente, "Porque me atiças?" e Echo respondeu com a mesma pergunta. "Vamos nos encontrar", disse o rapaz. O coração da ninfa dava saltos quando ela respondeu o mesmo, a correr para onde Narciso se encontrava, pronta para enroscar seus braços no pescoço dele. Mas Narciso, devido a sua beleza, era arrogante e bruto e ao ver Echo deu passos para trás exclamando, "Não me toque. Eu preferia morrer do que permitir que você me possua!". "Me possua", Echo respondeu, com seu coração a partir e em vão. Narciso a abandonou ali e ela foi esconder-se entre os arbustos nos limites da floresta.

Deste dia em diante, Echo passou a viver em cavernas, ravinas ou precipícios. Seu corpo emagrecia de dor e desaparecia progressivamente, até que um dia toda sua carne encolheu-se até sumir. Seus ossos transformaram-se em rochas e tudo o que sobrou dela foi sua voz que ainda se encontra pronta a responder a qualquer um que grite por ela, mantendo seu hábito de ter sempre a última palavra.


A crueldade de Narciso, não parou por aqui. Ele agiu da mesma forma arrogante para com as outras ninfas. Uma donzela, que havia esperado em vão por seu amor, rezou para que ele um dia sentisse o que era amar e não ser correspondido. Como escrevi antes, os deuses punitivos e invejosos ouviram a prece e tiveram grande prazer em concedê-la. Ártemis, deusa da caça, foi quem encontrou uma forma perfeita de puní-lo.

Enquanto Narciso caçava, ele encontrou uma fonte clara e espelhada em Donacon, na Téspia e, quando se curvou para beber, ele viu sua imagem refletida. Por mais que tentasse tocar a belíssima pessoa refletida nas águas, ele nunca conseguia: cada vez que ele estendia os braços para ela, ou tentava beijá-la, a imagem fazia o mesmo, apenas para desaparecer quando a água era perturbada e voltar minutos depois, em um jogo de sedução e fuga.

Narciso chorou quando viu que não conseguiria ter aquela pessoa refletida e quando suas lágrimas tocaram a água, a imagem desapareceu. Ele exclamou "Fique, deixe-me ao menos admirar-te, já que não posso tocá-lo". Admirar a imagem passou a consumí-lo e ele perdeu a cor e o vigor nesta paixão doentia. A história de Narciso tem pelo menos três finais. Em um deles, ele finalmente sucumbe à sua louca paixão pela imagem e joga-se ao lago. Fraco, não consegue nadar e afoga-se. Em outro, Narciso finalmente entende que o objeto de sua paixão é sua imagem refletida e, louco por nunca poder possuí-la, mata-se com uma adaga ao peito. Uma terceira ainda, diz que ele apenas definhou progressivamente.

Quando a alma de Narciso foi levada pelo rio Estige, que separava os vivos dos mortos, ele não resistiu e olhou por sobre a canoa de Caronte (barqueiro dos mortos) para que ver seu reflexo pela última vez. As ninfas prepararam um funeral para ele, mas não conseguiram encontram seu corpo. No lugar onde Narciso morreu havia uma flor púrpura, cercada de folhas brancas, que traz seu nome e preserva sua memória.

A Metamorfose de Narciso, de Salvador Dali

As prisioneiras do espelho

A versão apresentada aqui é baseada no poema épico Metamorfoses de Ovídio, que parece ter sido o primeiro a fazer a conexão entre os mitos de Narciso e Echo. Nesta versão, o adolescente Narciso é irresponsivo ao desejo dos outros de aproveitarem de seu belo corpo. Ser desejado é não experimentar o desejo. Já Echo foi punida e silenciada por Hera por ter-se intrometido em sua vida conjugal. Echo é punida por permitir a sexualidade... Narciso por recursar-se a permití-la.

É interessante notar que muitos teóricos da anorexia relacionam a necessidade de suprimir a sexualidade madura como um dos apectos psicodinâmicos da anorexia. Emagrecer desta forma é não permitir-se exibir os traços sexuais característicos da mulher madura, como mamas, coxas, cintura e quadril. É negar-se as curvas que caracterizam a feminilidade e a sexualidade ativas da mulher. Muitos trazem que a busca na anorexia não é tanto pela magreza como ideal de beleza, mas pela sexualidade infantil, pela pureza e pela evitação da sexualidade real (como a história de Catarina de Siena, que descreverei em um post futuro).

Quando lemos termos como narcisismo, seja em Freud ou em textos científicos, vemos o conceito Ovidiano de enfatuação natural da juventude por si mesma. A versão do poeta é a que Narciso definha lentamente, assim como Echo. Ambos os mitos, desta forma, se encontram entrelaçados na anorexia, vista como uma elaboração narcísica patológica associada a rejeição deliberada da maturidade sexual.

A associação de Echo com a anorexia é clara, já que o mito descreve claramente seu progressivo emagrecimento e desaparecimento, um desejo comum das anoréxicas: tornar-se vento, leve, borboleta, perder a forma e ter apenas voz. Já Narciso é mais complexo e ressalta as prisioneiras do reflexo, o obsessivo observar-se por horas à procura de defeitos irreais, na busca de atingir uma imagem da qual vale a pena enamorar-se.

Mesmo que se deixe o poético discurso psicanalítico de lado, avaliações psicométricas mostram que traços de personalidade narcísica e crenças narcisísticas são muito mais prevalentes em pacientes com transtornos alimentares (Sines et al., 2008). Bulímicas parecem ter atitudes mais associadas aos traços narcisísticos catacterísticos enquanto que anoréxicas do subtipo restritivo (que fazem dietas constante e purgam menos) estão mais associadas à um narcisismo denominado "pobre de mim" por pesquisadores, no qual elas se veem frequentemente como mártires e vítimas de abuso (Brunton, Lacey, and Waller, 2005).

As prisioneiras do discurso

Quando se estuda o discurso de uma paciente com anorexia, este se encontra organizado sistematicamente em torno da obsessão pela própria aparência. Como Echo, a anoréxica vive permanentemente apaixonada por outro, que idealiza, buscando desesperadamente sua aprovação a ponto de perder sua identidade. Prisioneira deste amor, ela definha progressivamente transformando-se e num legado de voz (ideia).
Para a anoréxica, há uma ruptura sintática e o discurso sobre seu quadro se torna solto, fragmentário, um eco de seu pensamento sobre si. Na consulta destas pacientes há longos períodos de estrutura circular na qual os elementos se repetem insistentemente, com rítmo e racionalizações explícitas.
Pode-se extrapolar um pouco o mito e pensar que ouvir as justificativas para o corpo emaciado ("meu metabolismo é rápido", "eu como normalmente, apenas faço exercícios") são ecos de outras anoréxicas, estas na mídia, que insistem em negar a realidade quando questionadas diretamente.

Ainda sobre o discurso repetitivo, vemos a necessidade destas garotas de estar em contato umas com as outras, de forma a reforçar seus comportamentos e discurso. A internet trouxe uma nova fronteira às pacientes que sofrem de transtornos alimentares, ao criar a possibilidade de se associarem, estimularem, dar apoio em um meio no qual todas se comunicam na mesma língua do discurso da magreza e da necessidade de se fazer voz e vento.

Dentro do capítulo dos transtornos alimentares, muitas outras histórias e lendas podem ser contadas, de forma a ilustrar com metáforas e abordagens psicodinâmicas o desenvolver do quadro e a interpretação simbólica. Provavelmente escreverei mais sobre o assunto em outra data e talvez descreverei e dissecarei outros mitos gregos que podem ser relacionados a psicopatologia e condição humanas.


Referências:

ResearchBlogging.org

Brunton, J., Lacey, J., & Waller, G. (2005). Narcissism and Eating Characteristics in Young Nonclinical Women The Journal of Nervous and Mental Disease, 193 (2), 140-143 DOI: 10.1097/01.nmd.0000152784.01448.fe

González, A. B. (1998). Narciso y el doble en la literatura fantástica victoriana. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha

Guerrero, M. M. (2006). La palabra de eco: rasgos lingüísticos propios del discurso de una paciente bulímica. Trastornos de la conducta alimentaria, ISSN 1699-7611, Nº. 3, 2006 , pags. 208-227

Sines, J., Waller, G., Meyer, C., & Wigley, L. (2008). Core beliefs and narcissistic characteristics among eating-disordered and non-clinical women Psychology and Psychotherapy: Theory, Research and Practice, 81 (2), 121-129 DOI: 10.1348/147608307X267496

Fotos:
http://www.fineartprintsondemand.com/artists/poussin/echo_and_narcissus-400.jpg
http://www.salvadordali.hit.bg/gallery/Metamorphosis%20of%20Narcissus.jpghttp://www.salvadordali.hit.bg/gallery/Metamorphosis%20of%20Narcissus.jpg

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4 Comentários:

Blogger esqueci a ana (ex-ana) disse...

Excelente post. Obrigada. Nunca pensaste em escrever um livro de divulgação científica? Tens uma abordagem múltipla aos problemas o que amplia o conhecimento e interesse. E alguns destes posts para além do gosto que certamente te dão, envolvem , trabalho, esforço, pesquisa...
ps-coloquei um link directo para o teu post no esqueciaana

10 de março de 2010 às 14:33  
Blogger Vanessa disse...

Ja pensei sim, e cheguei a comecar um sobre toxicodependencia, mas sou muito critica e nao gosto do que escrevo. O blog tem um aspecto mais informal e nao julgo tanto.
'E verdade que muitos posts envolvem um bocadinho de pesquisa, mas assim aprendo junto com o leitor (medicina 'e um ramo de constante aprendizado) e tambem mantenho-me produtiva nesta 'epoca de gravidez (lembre-se que estou em casa no momento). A gravidez parece arrastar-se nestas 'ultimas semanas e ao inves de preocupar-me com parto e bebe e os medos de sempre, a mente fica em constante redemoinho de ideias, evitando cair no ditado popular "mente vazia oficina do diabo".

10 de março de 2010 às 14:48  
Blogger Exahmia disse...

Gosto muito da tua forma de abordar os assuntos e de escrever.
A mitologia é uma excelente forma de exemplificar os distúrbios mentais e sou da opinião da ex ana deverias mesmo escrever um livro.

Engraçado isso da anorexia e bulimia e a sexualidade estarem tão relacionadas com a sexualidade e engraçado não se abordar isso na terapia de forma directa, pelo menos nas que fiz, apenas nos testes em papel a que tinha de responder e não respondia.
Agora na terapia para o meu outro problema nunca se fala disso e acho que é uma falha grave muito grave.

10 de março de 2010 às 17:22  
Blogger Lana Angélica Braudes disse...

Olá Vanessa! Estava procurando textos sobre Narciso e Echo na internet e caí no seu blog! Adorei!!! E obrigada por dividir assuntos interessantes!! =)

8 de outubro de 2010 às 17:17  

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