segunda-feira, 8 de março de 2010

As mulheres na psiquiatria

Hoje sentei-me em frente ao teclado com o objetivo de escrever um post sobre o Dia Internacional da Mulher (que por sinal comemora seu centenário). Mas não quero cair na mesmice de colocar a foto de uma rosa e um poema mal escrito que exalta a beleza do sexo frágil. Acredito que isso não enaltece nem a mulher nem o que se comemora nesta data. Lembro-me de todas as rosas, cartões bregas e chocolates que recebi de empregadores por este motivo.

Queria escrever um post sobre a história das mulheres na psiquiatria. Assim, fiz uma pesquisa no google e achei diversos artigos que trilhavam o caminho da liberação e o papel das mulheres nesta profissão, que como todas na medicina, era predominantemente masculina. Os artigos traçavam a história das psiquiatras nos EUA, na Inglaterra, na França... e lembrei que escrevo o blog em português, sendo mais adequado escrever sobre as mulheres brasileiras e portuguesas. Pesquisei os termos “mulheres na psiquiatria” e “futuro da psiquiatria”. Devo dizer que fiquei bastante decepcionada.

Encontrei um texto da Psychiatry Online de Walmor J. Piccini, na qual o colega relaciona as produções científicas e doutorados de colegas psiquiatras do sexo feminino. E só. No mais, os artigos e páginas a perder de vista que tratam destes termos falam da sexualidade da mulher, o lugar da mulher nas instituições psiquiátricas, o mal-estar que as histéricas causavam nos manicômios, centenas de páginas sobre depressão e TPM na mulher. E, posso estar a ser meio paranóica, mas achei tudo muito pobre. Milhares de páginas sobre as mulheres e muito pouco, na verdade, sobre nosso protagonismo nesta profissão. É claro que grandes psiquiatras brasileiras são louvadas, como algumas páginas que prestam homenagem a Nilse da Silveira, mas em geral, não mais que isso.

O papel das mulheres na psiquiatria é muito maior que isso. Nós não somos apenas pacientes com problemas sexuais, embora a sociedade brasileira e muitos pesquisadores ainda nos vejam assim. A visão freudiana do papel da mulher parece ainda preponderar e pairar por aquilo que é publicado em nossa língua. Não quero negar o papel da psicanálise no desempenhar de papéis profissionais, mas esta visão está um bocado ultrapassada. O mal estar não está apenas na cabeça do pesquisador que escolheu este tema para sua análise da feminilidade. Está contaminando todas as partes da sociedade brasileira e portuguesa. Nós não temos só depressão, anorexia e TPM. Mulheres também bebem (oh! Tabu!), usam crack (embora na literatura ainda se encontre que as mulheres só iniciam o uso de drogas através dos parceiros) e tem psicoses (não apenas puerperais).

Passei então a me lembrar de como comecei minha carreira. Quando escolhi fazer a especialização em psiquiatria tive que aguentar meus colegas de medicina (turma de 25 homens, 15 mulheres) a brincar que eu iria abandonar a medicina e que psiquiatria era profissão de loucos. A chefe do departamento de psiquiatria da universidade (sim! Uma mulher!) causava muito espanto nestes meus colegas. Solteirona, fumadora compulsiva (dentro da sala de aula), de voz rouca e já em seus 60 anos, ela inspirava autoridade só de entrar no ambiente. Mesmo dentro de minha família pude observar os olhares atravessados quando dizia que queria ser psiquiatra (Só um adendo: nunca em minha infância fui atendida por mulheres médicas. Cresci em uma família que acreditava que médico bom era homem).

Quando comecei a residência, esta mulher chefe da disciplina era um monumento ao poder feminino por si só. Ela praticamente havia fundado o departamento junto com outro colega e tive a oportunidade de entrevistá-la sobre o assunto (talvez um dia escreva sobre isso). Infelizmente, tive muito pouco contato com ela, pois adoeceu gravemente e teve de se afastar.

Durante os plantões que fazia como residente, passava muito do tempo na sala dos plantonistas do Pronto Socorro de Clínica Médica, pois amigos meus faziam a residência nesta área e trocávamos informações e companheirismo. Não só isso: não existe maior concentração de fofocas por metro quadrado do que em uma sala de plantonistas de um hospital. Qualquer que seja o hospital, qualquer que seja a disciplina. E mais uma vez, ouvia as opiniões sobre o papel da mulher (especialmente na psiquiatria) e as piadinhas machistas de sempre. Era impossível não cair no escrutínio dos colegas, que faziam perguntas sobre a vida sexual de um e de outro no departamento (ainda com aquela visão antiga da psicanálise contaminando sua ideia dos psiquiatras). Todos éramos loucos por escolher aquela profissão e as mulheres (claro) eram lésbicas (as mais poderosas) ou prostitutas. Nada era dito às claras, apenas insinuações. Hoje fico chateada por não ter protestado contra estes rótulos mais energeticamente, mas ainda era verde na profissão e na personalidade.

O tempo passa e mudo para Portugal. E, como no Brasil, o país ainda tem uma visão um bocado provinciana da mulher. No mestrado, diversas alunas residentes (internas) em psiquiatria rapidamente ganharam apelidos de fufas (gíria portuguesa para lésbicas). Sempre a questão sexual. Sim, porque uma mulher poderosa, que escolhe trabalhar nesta área só pode ter mesmo um falo (simbólico) ou ser uma devoradora de homens.

Não quero que pense que escrevo como vítima de discriminação (embora sim, tenha sofrido como tantas outras). Apenas penso que, agora com o distanciamento que tenho, vejo que ainda há muito a se trilhar na questão do papel da mulher nas sociedades de língua portuguesa. A sociedade inglesa também não é perfeita, mas esta análise não é sobre ela. É sobre minha pátria e minha cultura. Quem sabe um dia eu não pesquise no google sobre “mulheres na psiquiatria” e alguém escreveu uma tese historiográfica que traça o caminho das mulheres na profissão da psiquiatria, seja em Portugal ou no Brasil (ou Angola, ou Moçambique, etc..)? Nós contribuímos com muito mais para este ramo da ciência do que fornecer amostras de conversões histéricas para que Charcot iniciasse seus estudos sobre a histeria. É hora de sermos reconhecidas por isso.

PS: não desisti de escrever sobre o papel das psiquiatras na história da profissão. Vou preparar um post sobre o assunto e publicar posteriormente.

PPS: Achar uma foto para ilustrar este post foi dificil. Uma busca pelos termos women psychiatrist no google images só traz fotos de pacientes ou cartoons nos quais o médico é um homem e a mulher está no divã. Há um trocadilho ingês para mostrar nossos pré-conceitos no assunto:
"A man and his son were in a car accident. The man died on the way to the hospital, but the boy was rushed into surgery. The surgeon said “I can't operate, for that's my son!” How is this possible?"

PPPS: mesmo filmes que trazem a mulher como psiquiatra acabam numa hipersexualização da personagem (como Mr. Jones, no qual a terapeuta se envolve com Richard Gere, o paciente).

PPPPS: Quando liguei para minha família para informar que estava grávida e que já havia marcado minha primeira consulta, a primeira coisa que ouvi foi "o ginecologista é homem?" Não era nem homem e nem médico. Minha primeira consulta foi com uma enfermeira-parteria (midwife).

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3 Comentários:

Blogger esqueci a ana (ex-ana) disse...

Uma bonita homenagem. Sem flores ou chocolates. Com a realidade. E o que relatas também ocorre noutras áreas de investigação e no meio académico. Se alguém do sexo feminino se evidencia há geralmente da parte de alguns comentários ou insinuações veladas sobre alguém ter qualidades mas....( e com o mas os 'defeitos' triviais, reais ou inventados).
Obrigada pela homenagem.

8 de março de 2010 às 16:25  
Blogger Celso Silva disse...

Esta coisa de haver dias para isto e para aquilo... pessoalmente, faz-me uma certa confusão, até porque, há um forte fundo comercial nestas coisas... mas ainda assim existem factos históricos muito importantes que devemos relembrar para não cair no esquecimento...

"Há 145 anos, no dia 8 de Março de 1857, teve lugar aquela que terá sido, em todo o mundo, uma das primeiras acções organizadas por trabalhadores do sexo feminino. Centenas de mulheres das fábricas de vestuário e têxteis de Nova Iorque iniciaram uma marcha de protesto contra os baixos salários, o período de 12 horas diárias e as más condições de trabalho. Durante a greve deu-se um incêndio que causou a morte a cerca de 130 manifestantes....

“ Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.”"

Fonte: http://porondeandamos.webs.com/

8 de março de 2010 às 18:32  
Blogger Vanessa disse...

Caro Celso

Obrigada por esclarecer o real motivo deste Dia Internacional das Mulheres. Muitas pessoas perdem o entendimento de que em um dia como hoje não é para se dar/receber parabéns e sim para conscientização da luta pela igualdade. Não se vê esta tentativa de deturpação do significado em outros dias de conscientização como dia da luta contra AIDS/SIDA ou da consciência negra ou da luta contra as drogas.

8 de março de 2010 às 22:54  

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