quinta-feira, 4 de março de 2010

Ainda há tempo de salvar o "normal"

Este artigo de opinião foi publicado em 1 de março no Los Angeles Times: O original pode ser lido no link. A tradução abaixo é minha.

Ainda há tempo de salvar o "normal"
O último DSM da psiquiatria vai muito longe ao criar novos transtornos mentais
By Allen Frances


Como presidente do grupo que criou o atual Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV), publicado em 1994, aprendi com a dolorosa experiência como pequenas mudanças na definição de transtornos mentais podem criar imensas consequências não intencionais . Nosso painel tentou ser conservador e cauteloso mas inadvertidamente contribuiu para a criação de três "epidemias" falsas - transtorno do défict de atenção, autismo e transtorno bipolar infantil. Obviamente nossa rede foi jogada de forma muito extensa e capturou muitos "pacientes" que estariam melhor se nunca tivessem entrado no sistema de saúde mental.

O primeiro rascunho da nova edição do DSM, publicado para comentários com muita fanfarra no último mês, é cheio de sugestões que multiplicarão nossos erros e extenderão dramaticamente o alcance da psiquiatria de forma profunda no constantemente limitado domínio do normal. Essa imperialização médica da normalidade pode potencialmente criar milhões de observadores inocentes que a partir de agora serão rotulados como portadores de transtornos mentais. A indústria farmacêutica será gratificada - apesar da falta de evidência sólida de qualquer tratamento eficaz para as novas propostas diagnósticas.

O manual, preparado pela Associação Americana de Psiquiatria, é a única via oficial para um psiquiatra decidir quem tem um "transtorno mental" e quem é "normal" (Isso ocorre nos EUA. No resto do mundo também utilizamos o CID-10). As aspas são necessárias porque a distinção é muito difícil de se fazer na confusa fronteira entre os dois. Se os requerimentos para diagnosticar um transtorno mental são muito rígidos, algumas pessoas que precisam de ajuda ficarão de fora; mas se eles são muito frouxos, pessoas normais receberão tratamento desnecessário, caro e às vezes, prejudicial.

Onde quer que a fronteira DSM-verus-normalidade seja desenhada ela também influencia coberturas de seguros saúde, critérios de elegibilidade para serviços assim como  aposentadoria/pensões por deficiências e status legal - sem falar no estigma e na sensação individual de controle pessoal e responsabilidade.

Quais são as mais absurdas invasões da normalidade sugeridas no DSM-V? "Binge eating disorder" (transtorno do comer compulsivo) é definido como um episódio de comer compulsivo por semana por três meses. (Por sinal, eu, juntamente com 6% da população preencheria este critério). "Minor neurocognitive disorder" (transtorno neurocognitivo menor) englobaria muitas pessoas que não apresentam maiores problemas de memória do que o esperado pelo envelhecimento. Luto pela perda de um ente querido pode frequentemente ser mal categorizado como "depressão major". "Mixed anxiety depression" (depressão ansiosa mista) é definida por uma panacéia de sintomas difíceis de se distinguirem das dores emocionais da vida cotidiana.

As irresponsáveis e expansivas sugestões continuam. "Attention deficit disorder" (transtorno do défict de atenção) ficará muito mais prevalente em adultos, encorajando o aumento do já grande uso de estimulantes para melhora da performance. A "psychosis risk syndrome" (síndrome de risco para psicoses) poderia utilizar a presença de pensamentos estranhos para uma previsão sobre quem mais tarde poderia ter um episódio psicótico completo. Mas esta previsão estará errada pelo menos 3 ou 4 vezes para cada uma que acerta - e muitos adolescents que foram identificados como "em risco" receberiam medicamentos que podem causar ganho de peso, diabetes e redução da expectativa de vida.

Uma nova categoria para problemas de temperamento poderia capturar crianças com birras normais. "Autistic spectrum disorder" (transtorno do espectro autista) provavelmente será alargado para englobar qualquer ecentricidade. Pessoas que bebem demais (compulsivamente) ocasionalmente serão rotulados dependentes químicos e "behavioral addiction" (dependência comportamental) será reconhecida. (Se nós temos "jogo patológico", será que dependência da internet estará muito longe?)

A seção de transtornos da sexualidade é particularmente aventureira. "Hypersexuality disorder" (transtorno de hipersexualidade) trará grande conforto para os adúlteros que decidirem esconder a real motivação de suas aventuras sob uma desculpa psiquiátrica. "Paraphilic coercive disorder" (transtorno parafílico coercivo) introduz a ideia nova e perigosa que um estuprador merece o diagnóstico de um transtonro mental se ele sente especial excitação sexual com o estupro.

Definir a linha elusiva entre transtorno mental e normalidade não é simplesmente uma questão científica que pode ser deixada na mão dos especialistas. A literatura científica é geralmente limitada, nunca facilmente generalizada ao mundo real e sempre sujeita a diferentes interpretações.
Especialistas têm uma tendência quase universal a expandir seus transtornos favoritos: Não, como sugerido, por conflitos de interesse - por exemplo, para auxiliar companhias farmacêuticas, criar novos clientes ou aumentar verbas para pesquisa - mas por um interesse genuíno em evitar perder pacientes que poderiam ser beneficiados. Infelizmente, este zelo terapêutico cria um grande ponto cego aos riscos que o superdiagnóstico e tratamento desnecessário acarretam.

Este é um assunto da sociedade que transcende a psiquiatria. Não é tarde demais para salvar a normalidade do DSM-V se o interesse público for adicionado à necessária análise risco/benefício.

Allen Frances é professor emérito e ex-presidente do departamento de psiquiatria da Universidade de Duke.

Foto: http://www.qlinks.ca/Websites/qlink/Images/APAprotestcartoonDSM.jpg

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1 Comentários:

Blogger esqueci a ana (ex-ana) disse...

Excelente texto! Vai ao ponto essencial...e vindo de quem vem é para ser lido e discutido com muita atenção!
Muito obrigada pela sua tradução!
Vou colar uma chamada de atenção para o teu post.

4 de março de 2010 às 14:15  

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